Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Mónica Marques

30.04.14

“O interdito tem um valor sexual incrível, como se sabe”, escreve Mónica Marques no novo livro Para Interromper o Amor. Uma forma de interdito: um triângulo amoroso. Numa Rolim, escritora, vive no Brasil, está apaixonada por João Tito, e pela mulher deste, Antónia Quitério Parente. “Elas fumam erva e fazem amor”. Ele é um “ético-sensível”. Ela, a autora, garante que vale a pena cair de um prédio de sete andares.

“O coração é só um músculo com excesso de personalidade e notória mania das grandezas”. Para Interromper o Amor está cheio de títulos assim. Mas a maior parte puxa ao sexo. “Ele queria ver as duas juntas numa cama, ou não fosse um grande homem”. O livro mete Vasco Granja, Manuel Alegre candidato a presidente, Madonna a cantar Like a Virgin, o facto de Pedro Mexia (que apresentou o livro em Lisboa esta semana) ser um tesão, festas do Avante, neuroses burguesas, pipis depilados com bigodinhos de Hitler, panelas Le Creuset, a música dos Nouvelle Vague, o ar de abandono de Marilyn, conversas com o pai sobre os homens e o álcool, mas não sobre as mulheres e a cocaína, beijos e Fiódor (o Dostoievsky, sim), tudo ao mesmo tempo, hibiscos e jacarandás, aranhas e borboletas.

Dois anos depois do livro de estreia, Transa Atlântica, Mónica Marques, a voyeur, publica um livro de amor que as pessoas pensam que é um livro sobre lesbianismo. Entretanto fez 40 anos. Entretanto continua a viver no Rio de Janeiro com um marido que trabalha numa multinacional e dois filhos que gostam da vida do Leblon. Ela também.

Há frases assim: “Gosto demais do parlapié, tanto que me esqueço da performance”. Há frases assim: “… e tu dizes que estás molhada para mim e eu sinto o teu monte de Vénus e o teu clítoris duro e toda em mim e eu pergunto ao teu ouvido, sentes?...”

Há literatura que está na estante. E há literatura que está na cama. Esta, aparentemente, está na cama.

Conversa no Chiado. Sentada à mesa. Como se estivesse deitada. No divã.

 

 

Com que então, “puta bruta e melancólica”…

Todas as mulheres são um bocado putas. Sou bruta e melancólica. Puta é ser perversa. Bruta é não ser comedida. Melancólica é ser muito romântica. A personagem [Numa Rolim] é assim. Eu sou um bocado assim. Como a minha escrita é muito autobiográfica, as pessoas estão sempre à procura de mim naquilo que estou a escrever.

 

Não é uma tentação inevitável? Quando se fala do peito com sardas de uma das personagens, será possível não pensar nas suas sardas?

As sardas, essa descrição física, fiz de propósito – deixa lá baralhar isto mais um bocadinho, vamos fazê-los pensar que esta sou eu. Já vem do outro livro. Às vezes, em partes em que não sou eu as pessoas revêem-me, e às vezes em partes em que sou eu as pessoas não me revêem.

 

Um jogo. Uma sucessão de biombos. Diz-se que os livros de Numa Rolim são buracos para se espreitar para dentro dela.

Exactamente. Gosto de ver. Sem ser vista. É isso que fazemos quando estamos a ler. [Ao ler o meu livro] vê-me através de si, através de ideias pré-concebidas que tem acerca de mim. Isso é uma perversão boa. Eu, como leitora – que sou muito melhor do que como escritora – procuro sempre encontrar bocados dos escritores de que gosto nos livros que escrevem. Projectar-me neles.  

 

É um disfarce.

É. Há um fio invisível – tenho-o dentro de mim muito bem marcado – que diz até onde é que me mostro. Se fizer isso bem, dá a sensação de que estou a mostrar tudo, e não estou a mostrar nada. Voltamos às perversões…

 

Como é que aprendeu a delimitar essa zona com tanta segurança, tanta precisão?

A linha imaginária fixei-a porque sou uma pessoa de certo bom senso, apesar de tudo, e porque trabalhei muito isso com o meu analista. Sei que aquilo é muito desbragado. Mas é uma coisa fingida. Este livro, o outro livro: o que as pessoas pensam que sou eu, não sou eu. É um desbragamento que não tenho na minha vida real. Quanto mais nos mostramos, mais seduzimos.

 

Ou não. O mistério, a ocultação, pode ser mais estimulante, fantasista. E isso é sedutor.

É verdade. Mas se há coisa boa nos livros que escrevo é a capacidade que tenho de mostrar e não mostrar. Mostro até ali e depois venho embora. Sou uma teaser.

 

O leitor procura-a na personagem de Numa Rolim, a escritora que vive no Rio de Janeiro. Não por acaso, um dos autores que é citado no livro é Philip Roth e expressamente o seu alter-ego Zuckerman, escritor e personagem recorrente. Serve-lhe de inspiração?

Sim. Veja no Woody Allen – é a mesma coisa. Faço isto inconscientemente. Gosto do Roth.

 

Porque é que o sexo é a maneira de esconder aquilo que verdadeiramente importa e de que não quer falar?

Faço isso como uma defesa, sem dúvida nenhuma. Se as pessoas pensam que me exponho falando de sexo, podem ir por aí. Mas há um pudor muito grande em falar naquilo que verdadeiramente importa. Ou melhor, falo. Falo camuflado. Talvez se consiga ler nas entrelinhas, nessa brutidão com que falo sobre sexo, uma parte de mim que não quero mostrar – e que são os sentimentos. Sinto-me atrapalhada a falar deles. Tenho vergonha de falar deles. São coisas muito íntimas.

 

Falar de sexo é mais fácil para épater la bourgeoisie.

Pronto. Querem?, eu dou. É uma parte que até agora foi mal resolvida em mim. Quanto mais falar, melhor fico, mais espanto.

 

Lê-se na página 52: “Quem escreve sobre sexo, não gosta de sexo ou não tem sexo”.

Tem razão.

 

Não sou eu que tenho razão. Não fui eu que escrevi isto.

Ahhh. Fascina-me. Gostava de ter uma boa relação com o sexo. Estou a aprender. Hoje estou melhor do que aos 18 anos. Mas isso é o percurso das mulheres. Uma mulher de 40 anos está muito melhor com o seu corpo, com o corpo das outras pessoas. Perdi-me. Ah. Sexo, todos temos. Sexo de qualidade, temos poucos. Quando se tem, é muito bom. O que é que quer que diga? O sexo pode foder-nos a cabeça. O sexo é overrated.

 

Está a disparar títulos… Tem a certeza de que quer falar da sua vida sexual?

Na minha vida, até agora, sempre foi mais importante uma carrada de outras coisas que o sexo. Posso ter uma relação óptima com sexo merdoso. Não lhe atribuía importância. Mas as mulheres de 30 e tal anos querem sexo bom. Deixam de fazer fretes.

 

“Ama-se com uns, fode-se com outros”.

Nessa frase está quase tudo. Podemos amar uma pessoa e não ter sexo bom com ela. É difícil conseguir juntar tudo numa única pessoa. Às vezes o sexo é melhor com alguém de quem emocionalmente estamos mais afastados. É isso que essa frase quer dizer. Gosto muito de amar. Gosto muito de estar apaixonada. Havia uma clivagem nítida entre o amor e o sexo. Eu não juntava as duas coisas. Deixou de existir essa clivagem. Estou mais resolvida. Penso que no próximo livro não vou precisar de escrever tanto sobre sexo. Ou seja, de me esconder tanto.

 

“A minha mãe diz que só escrevo sobre sexo”. É uma dúvida que nos percorre quando lemos os seus livros: como é que os pais dela a lêem?

Não faço ideia e não quero saber. Ontem estive com o meu pai, que tinha acabado de ler o livro, e… é difícil. É difícil para eles porque me procuram aí dentro, porque sou a menina deles, porque ficam baralhados. E é difícil para mim. Há uma parte auto-biográfica, em que me reconhecem. Mas depois, onde é que eu estou? É como se conhecessem a matéria-prima e depois não reconhecessem o resultado. Mas continuam a gostar de mim. A minha mãe não comenta. Não diz “que só escrevo sobre sexo”. Acho que pensa, mas não diz. Não acha engraçado que essa seja a única referência que se faz à figura materna e que este seja um livro sobre uma relação homossexual?

 

O que é flagrante é que os homens desta história não têm importância nenhuma, não têm qualquer peso. 

Viu como fiz a cena de sexo com o homem? Não há sexo. Fala-se de tauromaquia e de uma tartaruga chamada Platão. Este é um livro sobre um amor entre duas mulheres. Essa leitura que fez – a de que os homens são neste livro figuras acessórias – é correctíssima para mim. Acho que se gosta de pessoas. No meu caso, já gostei de muitos homens e de algumas mulheres. Precisava de falar disso. E o livro ficou assim. Estou orgulhosa de o ter conseguido escrever. Foi preciso ir um bocadinho dentro de mim; não um bocadinho: muito.

 

Foi uma forma de exorcizar? O modo de o fazer foi através do sexo e não do amor. Eu não percebi que as duas mulheres do livro se amam.

Muito. [Exorcizar através do sexo] tem a ver com a forma como escrevo. Raramente digo a uma pessoa “amo-te”. Custa-me mais do que falar em sexo. Não sei explicar porquê. Neste livro eu só vejo ternura. E você diz-me que achou isto um amor muito sexualizado…

 

Achei.

Mas não é. Para si é, está no seu direito. Para mim, é um livro sobre o amor. A relação da Numa Rolim com o João Tito não é maltratada a nível emocional. Eles gostam muito um do outro. São cúmplices. Há um problema em mim que transparece nos livros: não consigo ter relações que não me deixem à beira do precipício. Sou pouco madura. Só gosto das relações quando há um perigo iminente. Quando há paixão. Não consigo transformá-las em amor.

 

Quando há o “ilícito”, “interdito”, “brincadeira com o fogo” –  palavras usadas no livro.

Sim. Isso tem a ver com a minha incapacidade de gerir a banalidade dos dias. É difícil viver assim, é cansativo, é uma merda, uma chatice. Mas aprende-se nas sessões de análise.

 

Neste livro não há idas ao psicanalista. Antes disso: “… é como cair de um prédio de sete andares, mas vale a pena”.

Isso é a paixão. O Freud fala disso – desejo de morte?, uma tendência para o abismo? E quanto menos maduros somos, mais temos. O meu médico costuma dizer que cheguei lá com 15 anos e que agora tenho 18. Adoro viver a cair. De sete andares. Estou sempre a apanhar pancada, mas não desisto. É uma adrenalina enorme. Estou sempre a canibalizar os outros, sugar até ao tutano.

 

Implica viver numa esquizofrenia permanente. Porque está a atirar-se ao precipício e isso nada tem que ver com pôr os miúdos no colégio ou as rotinas de uma mulher casada no Leblon.

Completamente. É preciso sair desta esquizofrenia, mas até agora não fui capaz. Sou duas coisas, pelo menos. O lado burguês e o lado revolucionário. Dá trabalho e fico maluca, mas é assim que sou. Diria que o amor é o meu lado burguês e o sexo o meu lado revolucionário.

 

Estas duas personagens, Numa Rolim e Antónia, encarnam esses dois lados. Uma foi às festas do Avante com os pais, e “suportou” as canções revolucionárias…

E o Leo Ferré!

 

A outra é uma burguesa cujos pais fugiram para o Brasil no pós-Revolução. Contudo, neste romance polifónico, nem sempre identificamos no arranque de cada capítulo quem é que o conduz. Pode ser a mesma pessoa desdobrada em duas?

É a mesma pessoa desdobrada em duas. Sou sempre eu. Até nele [João Tito] sou eu.

 

Não são personagens autónomas?, são vozes suas?

São vozes minhas. Escrever é para mim um puro egoísmo. Eu só estou a falar comigo e a tentar resolver as minhas contradições e neuroses. Acho que isto é muito imberbe. Quanto melhor eu escrever, menos haverá confusão entre as personagens. Se acho que este livro é melhor do que o outro – escrevo melhor, houve uma evolução – tem de haver mais. Tenho de pensar mais em quem me lê. Fico assustada porque quero muito que as pessoas de quem eu gosto gostem do livro.

 

Porquê? Porque é que é a “criança pedinte sempre à espera da aprovação dos adultos” – que é outra frase usada no livro?

É um problema. Aí, no livro, está a luta de uma mulher a tentar ser uma pessoa melhor. Não quero ser essa mulher pedinte. Arranjei uma forma muito boa de me tratar – que é escrever.

 

O processo analítico é anterior à escrita ou são concomitantes?

São concomitantes. Muitas vezes saio das sessões, vou para casa e escrevo com clareza. O que a análise me tem dado é clareza. Faço há três anos e meio. Agora já consigo discutir com ele, já o ponho em causa. Vou fazer para o resto da vida, se tiver dinheiro. Fazia sentada, era difícil deitar-me. Um dia cheguei lá e disse: acho que me vou deitar.

 

É nessa mesma posição que se passa a maior parte do tempo no livro. É nessa, com o analista, que fala das coisas mais íntimas e de sentimentos.

Mas são coisas distintas. A minha vida toda deu-me mais gozo conversar do que foder. (Não sei se isto está a sair alguma coisa de jeito…)

 

No livro há várias “conversas de ir ao cu”. O que são conversas de ir ao cu?

Uma conversa de ir ao cu é uma conversa que se faz para engatar. A sedução entre as pessoas é um bocadinho uma conversa de ir ao cu. Já vimos tantas vezes que já reconhecemos. 

 

Também se diz que os livros de Numa Rolim se destinam a leitores com problemas no baixo ventre. E que são “histórias de foda e desamor”.

Isso é verdade. Os meus livros são de desamor. São tristes. Aparentemente são de foda, mas é só desamor, é só uma procura.

 

Porque é que usa tanto vernáculo?

Da foda? Porque gosto.

 

O verbo mais usado no livro…

É foder.

 

E comer. Muitas vezes são equivalentes. Come-se aquela pessoa.

Acho isso bruto e carinhoso ao mesmo tempo. Lá está: sou uma puta bruta e melancólica.

 

A relação entre as duas é a materialização de uma fantasia? Escreve-se: “Fomos a nossa fantasia”.

Fomos a nossa fantasia e a de outros. Eu acho mesmo que todas as mulheres já gostaram de outra mulher. Acontece. É fácil acontecer. Fantasiam à volta disso ou não. Vão ou não.

 

No filme de Woody Allen Rosa Púrpura do Cairo, a personagem entra para dentro do filme. Passa a viver dentro da sua fantasia. O livro é uma maneira de viver do outro lado do ecrã?

O livro foi a minha maneira de viver essa fantasia. Era uma coisa em que pensei toda a vida.

 

Porque é que o livro está menos no Brasil – até na linguagem? Não há bunda dourada no sol de Ipanema. Não se fala de “boceta” ou “xoxota”. Fala-se do muito português “pipi”.

Tem a ver com o lugar onde está a minha cabeça. Neste livro, estava em Portugal. Não me saiu nada, nem no linguajar, nem no modo de escrever, de brasileiro.

 

Refere-se a Portugal como “um país de esquina”.

Somos pequeninos. A população de Portugal é a mesma do estado de S. Paulo.

 

Há várias referências às feiras do livro de Paraty e da Póvoa do Varzim, as Correntes D’Escritas. A sua situação, enquanto autora que as frequenta, é privilegiada? Porque é uma outsider, vive no Rio, tem outras formas de rendimento.

Não dependo. O mundinho literário português, pelo que me foi dado ver, é mesquinho. É uma coisa que me atrai e repele. Atrai-me porque gosto de livros, porque o meu sonho sempre foi este – escrever. Entrar e fazer parte faz bem ao ego. Mas é pequenino, as pessoas estão todas feitas umas com as outras. Tive uma sorte brutal – ter sido descoberta pelo Francisco José Viegas. Se eu tivesse sido editada pela Oficina do Livro não tinha as costas tão quentes. É verdade que se fui editada pelo Francisco José Viegas é porque tenho algum valor. Tive críticas muito boas ao primeiro livro. Espanta-me. A minha escrita não é convencional. Não consigo chamar-me escritora.

 

No livro, nas cenas de cama, José Rodrigues Miguéis olha da estante…

[riso] Sinto uma certa soberba [em relação ao meio] porque não preciso. Se disserem bem, dizem bem, se disserem mal, dizem mal. Não sei como é que este livro vai ser recebido, mas não me preocupa muito. Quer dizer…, se começarem a aparecer críticas destrutivas se calhar vou ficar abananada. Não percebo porque é que batem tanto na Margarida Rebelo Pinto. Deixem-na. É por ela vender muito? É porque a compram nos supermercados? É melhor comprarem a Margarida Rebelo Pinto ou a Mónica Marques do que andarem a… roubar.

 

No livro pergunta-se: “Qual é o mal? O mal é roubar, ou matar pretos e estuprar crianças”.

É. O mal são essas coisas ruins. A maioria das pessoas anda preocupada com uma série de coisas que não são essenciais. Eu devo estar iluminada. Os meus amigos dizem que estou uma chata, quase mística. Não bebo, não me drogo, não faço nada!, [riso] Apanha-me numa fase em que estou satisfeita, tranquila, e acho que temos é de ser felizes. (Acho que isto não correu bem.

 

Porquê?

Acho sempre que nunca corre bem.)

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

Ler o Amor

30.04.14

E se falássemos de livros de amor? E se falar de livros de amor não for piroso nem lamecha? E se o amor for mesmo o tema que interessa?

 

Vai ser sobre isso o próximo Ler no Chiado.

Com Dulce Maria Cardoso (que editou recentemente "Tudo são Histórias de Amor") e Almeida Faria (cuja obra tem vindo a ser reeditada). 
Dia 15 de Maio, às 18.30, na Bertrand do Chiado.
Eu modero.
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand.

Os mais lidos de Abril

30.04.14

Fim do mês, lista de conteúdos mais lidos no blog:



5º Patrícia Pascoal 
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/patricia-pascoal-116401

 


4º Vasco Graça Moura
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/vasco-graca-moura-103058

 


3º Júlio Pomar e Mário Soares
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/julio-pomar-e-mario-soares-119878

 


2º Maria Elisa Domingues
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/maria-elisa-domingues-115789

 


1º Helena e Eduardo Nogueira Pinto
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/eduardo-e-helena-nogueira-pinto-118955

 

 

Obrigada pelas leituras e pelo ânimo!

 

 

Nuno Artur Silva

23.04.14

Nuno Artur Silva não foi à escola no 25 de Abril de 74. A mãe ficou aliviada: “Já não vais à tropa”. Jogou à bola quando devia ler O Capital, foi professor de português, sublinhou para os alunos, entre outras, a palavra “iglantónico”, de Dinis Machado, no livro O que Diz Molero.

Uma coisa iglantónica é uma coisa extraordinária, sem dimensão, surreal. Foi mais ou menos o que aconteceu neste país em 40 anos. O mapa é o mesmo e Portugal não é o mesmo. Quatro fases (segundo ele). Quais são as grandes personagens deste enredo que é o nosso? E quais são as mudanças, recorrências, retrocessos? Para Nuno Artur Silva, há o tipo que tem a chave da casa de banho, o austero e honrado pai de família, o pachola...

É fundador e director geral das Produções Fictícias (o viveiro criativo de onde saíram personagens como o Diácono Remédios, os Gato Fedorento, que descobriu Bruno Nogueira...). É director do Canal Q. É também aquele gajo que aparece na televisão a moderar o Eixo do Mal e a dizer umas piadolas (como “armani ao pingarelho”).

 

“Onde é que estavas no 25 de Abril?”, dizia um personagem interpretado por Herman José no Herman Enciclopédia. Comecemos por aí para falar da revolução.

O Eduardo Madeira e o Henrique Dias trouxeram-me um texto divertidíssimo em que havia um personagem chamado Artista Bastos, que era uma paródia [ao Baptista Bastos]. Fizemos uma vez e foi tão hilariante que decidimos repeti-lo.

O Baptista Bastos fazia um programa na SIC em que fazia esta pergunta recorrentemente. O que o humor faz é a deslocalização do contexto. É fazer o que foi feito com o mictório do Duchamp. Algumas frases que são atribuídas aos humoristas são coisas que estes agarram e deslocam do contexto.

 

Essa era uma delas. Havia outras.

O “não havia necessidade, o artista é um bom artista” é uma frase que a mãe do Herman lhe dizia quando ele se excedia. O José de Pina, o Miguel Viterbo e eu imaginámos um provedor, padre, que dissesse aquela frase. O mesmo com o Lauro Dérmio. O Lauro António apresentava os filmes e dizia: “Let’s look at the trailer”. Muitas vezes a imitação exagerada, a caricatura, marca o traço e a partir daí olha-se para o original de outra maneira.

 

Já identificou várias personagens que marcaram a cultura pop dos últimos anos. Quais são os grandes personagens-tipo dos portugueses?

O grande personagem-tipo da sociedade portuguesa contemporânea é o facilitador. É o personagem central da vida política portuguesa. Provavelmente já estava no Eça – porque tudo está no Eça. O facilitador é o middle man, o homem que apresenta este àquele. O que não cobra mas cobra. São os tipos que passam pelo Governo, vêm dos partidos, facilitam os negócios. E depois vão beneficiar deles mais à frente quando saírem do Governo. Há os pequenos e os grandes facilitadores. É tudo uma questão do nível a que se está na escala alimentar.

 

Se se come de boca aberta ou se se toma o pequeno-almoço no Ritz.

Sim. E há uns que são usados pelos outros.

 

É por sermos tão poucos e tão pequenos que há tantos facilitadores? Toda a gente conhece toda a gente mas é preciso alguém que apresente, que abra a porta.

Um dos problemas portugueses centrais é o da justiça, claro; mas o outro é o da regulação. Não há reguladores poderosos. O papel da regulação, que em última análise é o papel do Estado, não tem poder necessário. Portanto a corrupção impera. Os reguladores são permeáveis. Evoluímos imenso desde o 25 de Abril mas ainda não conseguimos ter uma sociedade com um poder de regulação forte nos vários sectores.

 

Está a pensar no Banco de Portugal, na CMVM, nos tribunais?

E até em coisas mais circunscritas, nos reguladores para o audiovisual.

 

Se os reguladores não têm esse poder efectivo, não representam a autoridade como seria desejável, quem é que manda?

As corporações transitaram de antes do 25 de Abril para cá. As famílias reconstituíram-se. Têm sido publicados livros que revelam que depois do período de agitação que foi a revolução de Abril e a sua sequência, o PREC, depois das fugas para o Brasil, o poder não sofreu grande alteração.

 

E são os mesmos que têm o poder?

São. Há políticos que circunstancialmente têm o poder. Há muitos pequenos poderes. Há o tipo que tem a chave da casa de banho. Ele não tem poder para mais nada, mas naquele momento tem a chave da casa de banho e todos os que precisam de lá ir têm que lhe pedir a chave.

 

Contudo, quem tem mesmo poder é quem tem a casa, o dono da casa – onde fica a casa de banho.

Claro. Um dos falhanços do que se seguiu à revolução de Abril, do desenvolvimento da democracia, é a não-alteração destes poderes. A crise e a tutela da troika com este Governo – que vai mais além da troika – fez regredir a sociedade em coisas decisivas. A desigualdade social aumentou. É um retrocesso inaceitável.

 

O que é que é específico do facilitador deste tempo? É sempre muito lustroso, pedante, passeia pelo Chiado? Há espécimes deste tipo n’ Os Maias.

O personagem em si não mudou, o que mudou foi o contexto e a situação em que ele se move. Hoje têm telemóvel. Os contactos do telemóvel são uma novidade.

 

Essa lista é poder.

Sim. É um tipo que faz um favor aqui e outro a ali e vive disto. Em todas as áreas, política, financeira... Até na área artística isto funciona.

 

Na área artística não são os agentes? Isso é um trabalho específico.

Mas há quem se mova sempre, também, desta maneira.

 

Isso é porque não tem talento suficiente para contar apenas consigo ou é porque o sistema é assim?

O sistema cria esta figura. O problema é quando se dá demasiado poder a estas figuras. É isso que está a acontecer. Quando não há líderes com desígnio, projectos estratégicos, quando se ganham as eleições com um programa e se troca o programa por um oposto e não se é confrontado com isso; quando se tem um jornalismo que não é confrontativo mas acomodado e receoso; quando se tem isto tudo, este tipo de gente ganha mais poder. Quando há uma paisagem de personagens fracos, secundários, mentirosos, inconsequentes, os facilitadores ganham mais poder do que antes. Têm na mão os líderes, muitas vezes.

 

Isso é outro poder, ainda. Não é o poder do acesso, é o poder do “o que eu sei sobre ti”.

Estamos minados por esse tipo de coisas. E temos uma sociedade civil muito fraca. As coisas não têm consequência. A sociedade tolera tudo. Pessoas que deviam ter sido afastadas dos lugares, ou terem-se afastado dos lugares, perduram para além do que é imaginável. Há actos que se praticam e que estão impunes porque parece que a opinião pública não se escandaliza, não se mobiliza.

 

Estou a lembrar-me de Miguel Relvas e de toda a polémica associada à licenciatura. E do sketch que fizeram e que passou no Canal Q, Cartão Relvas. Se isto acontecesse nos Estados Unidos, em Inglaterra, noutro país onde a democracia é vigorosa, seria possível que a pessoa se prolongasse no poder?

A percepção que tenho é de que na Escandinávia isto seria impensável, que os próprios se demitiriam. Em países anglo-saxónicos, a exigência social não permitiria que estas situações durassem muito tempo. Mas isso não impede que Jon Stewart, o principal humorista político americano, tenha ido a um programa jornalístico, o Crossfire, e tenha sido extraordinariamente antipático: “Se tenho êxito é porque vocês não estão a fazer o vosso trabalho”. Isto nos Estados Unidos, o que seria em Portugal... Em Portugal, numa altura em que o jornalismo está absolutamente fragilizado, em que o jornalismo económico e financeiro não tem meios para investigar, em que há cada vez menos reportagem…

 

Porque a reportagem e a investigação custam dinheiro.

E também porque não há projectos jornalísticos suficientemente fortes. Neste momento até os canais de informação estão em risco de se transformar em canais de futebol.

 

É o totalitarismo da audiência?

E da audiência mais imediata.

 

O que quer dizer quando fala da fragilidade do jornalismo? A liberdade de expressão é um dos pilares da definição de democracia. Até onde temos liberdade de expressão? E até onde é que ela está ameaçada?

Há pouco perguntava como é possível estes personagens (os facilitadores) sobreviverem. Não nos podemos esquecer que temos tido um bloco central de políticos, Partido Socialista, Partido Social Democrata e CDS. Estas pessoas encontram-se todas nos mesmos lugares e muitas vezes têm, fora dos partidos, cumplicidades. Há arranjos para além do sistema eleitoral que fazem perpetuar estes favores. Há uma série de nomes permanentes nos conselhos de administração que não são contestados por ninguém. São os tipos que não levantam problemas – e são postos lá porque não levantam problemas. Pacheco Pereira falava disto recentemente. São facilitadores em versão ainda mais etérea: não precisam de fazer nada.

 

É incrível como o não fazer nada se transformou num poder.

É um poder extraordinário.

 

A isso chama-se “ser a voz do dono”, não é?

É uma variação do “é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”. Há uma expressão que tenho ouvido nos últimos anos: “Esse é óptimo, é uma pessoa respeitabilíssima”. Só porque dizem que é respeitável, nunca se fez um check

 

Nem se faz check quando as pessoas têm doutoramentos em universidades estrangeiras, e estão na Goldman Sachs ou em instituições prestigiadas.

Tenho uma falta de respeito tão grande, às vezes, por graus académicos... Basta conhecer as pessoas para ver como tudo isso é vento. Com o tempo deixei de ficar impressionado com currículos.

 

Voltemos aos grandes personagens. O que não levanta problemas tem qualquer coisa de pachola. É o português para quem está sempre tudo bem, que leva a sua vidinha, que cumpre com o que é preciso.

Uma das coisas que me agradam é estarmos a perder o estereótipo do português. Nota-se nas gerações mais novas. As pessoas estão a ser europeias, cidadãs do mundo. Estão a ser para lá de portuguesas. Sinto-me mais lisboeta que português, mas sou português, claro. E sou da língua portuguesa. Também me sinto identificado com coisas que não são de cá.

 

Porque é que se sente mais lisboeta e mais da língua portuguesa? A que é que isso corresponde?

Certas coisas do norte do país – as aldeias, o peso católico: quando vou a esses sítios não me sinto dali. Lembram-me o salazarismo, onde passei a minha infância. É uma imagem que ainda está muito presente. Sei que faz parte do território onde vivo, mas não me sinto dessa pátria. As pátrias são sempre lugares imaginários. E o conceito de pátria é recente, é do século XIX. Para mim tudo são ficções.

 

O que quer dizer com essa frase? Explique a um cientista, preso aos factos, porque é que acha que tudo são ficções.

Vivemos dentro de ficções. Construímos ficções. As religiões são ficções. A maneira de nos relacionarmos amorosamente e de inscrever os nossos desejos é em ficções. As grandes sociedades criaram mitologias ricas e diversificadas. Os gregos, os americanos, o cinema e a televisão. Pode-se medir a vitalidade e a força de uma civilização pela vitalidade pela capacidade de construir heróis, histórias, de criar inspiração para os seus habitantes, modelos que permitam às pessoas sonhar, ambicionar ser como eles.

 

O que é que hoje faz parte e identifica a nossa mitologia?

Quando viajamos para fora (Brasil, Argentina), chamam-nos europeus, não dizem que somos portugueses. A democracia grega, o catolicismo são marcas da nossa identidade. Os jovens são dominados pela cultura anglo-saxónica. Temos uma influência crescente do sul, quer de África quer do Brasil. A nossa identidade é construída nestas coisas todas. E hoje há uma possibilidade extraordinária: a escolha. Há livre arbítrio.

 

A possibilidade de escolha é uma marca da Europa?

A liberdade de escolha, a libertação de Deus e das ideologias. Isto, consagrado pela democracia (que é, não só a vontade da maioria, mas sobretudo o respeito pela minoria) é um património extraordinário – europeu. Depois foi amplificado pelos Estados Unidos.

 

E chega cá novamente, e em estéreo, contaminando as novas gerações.

Sim. Uma das grandes conquistas dos últimos tempos é a possibilidade de um jovem português de 20 anos se deslocar pela Europa sem parar em fronteiras. E o Erasmus, a possibilidade de estudar nas várias universidades.

Isso da pátria já não faz muito sentido. O que faz sentido é uma ideia de cidadão do mundo. Gosto de pensar que a pátria é o sítio onde nos encontramos com os outros, com os que acreditam no mesmo que nós, que se riem do mesmo que nós. As pátrias são sempre errantes, flutuantes. E depois há territórios comuns, que podem ser reais ou imaginários.

 

É uma ideia poderosa.

Quando vamos a uma cidade entramos muito mais na mitologia da cidade do que nas ruas reais da cidade. Paris é Paris porque está cheia de histórias. Quando vamos por uma rua, estamos a ver os romances que lemos sobre Paris. Vamos atrás dos personagens, das músicas, dos filmes.

 

Vamos atrás das histórias e isto tem valor económico. Por isso é que as ideias custam tanto dinheiro?

Por isso é que as ideias são tão valiosas. Lisboa começa a ser uma grande cidade quando começa a ser, para além da cidade do terramoto – que começou por torná-la internacional –, a cidade das Descobertas, de Fernando Pessoa. Começa a ser a cidade de Saramago, das fadistas. Não há nada mais atractivo do que ser uma cidade de sonho.

 

Há pouco falou da importância dos heróis, dos mitos, desses com quem nos queremos identificar. Olhando para os últimos 40 anos, identifica alguns portugueses de excepção, admirados, que os outros queiram replicar?

Pessoa é o primeiro, depois do 25 de Abril, a deixar um sinal no mundo. Foi descoberto a partir dos anos 80. Havia a Amália e o Eusébio. Agora há muito mais. Os arquitectos, o Siza, o Souto Moura. São geograficamente do nosso território e notabilizaram-se. O que é que isso faz por mim…?

 

O que isso faz pelo país é trazer admiração internacional.

Se isso nos tornar mais cosmopolitas, se faz com que tenha mais acesso à diversidade do mundo, óptimo. Isso é que é decisivo. Fico contente quando o Ronaldo é o melhor jogador de futebol do mundo. Acho piada à história do miúdo reguila da Madeira que de repente tem o mundo aos pés. Mas é sempre um orgulho um bocado bairrista.

 

O filme mais visto o ano passado em Portugal, e um dos mais vistos em França, foi A Gaiola Dourada. Independentemente do Ronaldo, do Siza, da Amália, do Saramago, as piadas continuam a ser sobre o português que trabalha na construção civil e a portuguesa que é porteira. Se calhar a nossa imagem não mudou tanto como isso.

Não, não mudou. Apesar de tudo há os Mourinhos. O que era importante (e era essa a grande oportunidade da Europa, que não sei se perdemos), era poder estar em Lisboa como estamos em Berlim. E um jovem que nasce em Viana do Castelo ou que nasce em Portimão ter acesso às melhores escolas.

 

Um jovem da Baviera tem acesso às mesmas escolas que um jovem de Berlim?

Não sei. O Tony Judt, um teórico, usava uma expressão para a social-democracia: a banalidade do bem. Conseguimos, depois de duas guerras fratricidas na Europa, montar um sistema social. Poucos anos depois tínhamos uma Europa com serviços públicos excelentes, com educação paga para todos, paz, prosperidade. É uma coisa preciosa. Era isto que fazia sentido trazer da revolução [de Abril] para aqui.

Para além de pertencermos a esta Europa, pertencemos a um espaço de língua portuguesa. Ao Mediterrâneo. Podíamos fazer com o Brasil uma ligação especial. Gosto muito da ideia do Pedro Bidarra de podermos ser uma espécie de estado europeu do Brasil.

 

Uma ideia provocatória.

Há uma série de plataformas, de territórios com que podemos jogar – a Europa é um deles. O que me interessa é aumentar a capacidade de as pessoas terem acesso a tudo o que o mundo tem de melhor. Entristece-me perceber que estamos a regredir nesse ponto. Há mais desigualdade. Há menos diversidade no acesso à cultura. Veja-se a televisão privada em Portugal, o que poderia ter sido e o que está a ser. No prime time das televisões vê-se uma profusão de formatos anódinos.

 

São concursos que vêm da Holanda e de outros países que achamos que são civilizados, e cujos formatos replicamos.

Podíamos ter sido o modelo anglo-saxónico e ter investido mais em ter documentários, séries, filmes. O que fizemos foi seguir o modelo italiano e espanhol das variedades. A RTP sempre foi uma televisão de variedades.

O grande modelo ficcional televisivo, que é talvez o grande acontecimento cultural do pós 25 de Abril, é o domínio absoluto das telenovelas. A importância das novelas da Globo, para criar a mitologia de um país que de outra maneira não a teria, é decisivo num país-continente como o Brasil. Num país como Portugal é absurdo. É uma coisa monolítica do ponto de vista ficcional. Em vez de provocar a imaginação, adormece-a.

 

Regressemos aos grandes personagens. O Diácono Remédios, conservador, puritano, encarna o Portugal antigo?

Sim. Não imaginei que o Diácono pudesse ser tão popular. A figura austera ainda é dominante em Portugal. É a imagem tradicional do pai que o Salazar tinha, que o Cavaco tem. Por oposição ao político e à figura mais extrovertida, aparece o homem sério, íntegro, austero. É o Cavaco por oposição ao Soares. Durante muito tempo Cavaco era considerado o melhor primeiro-ministro de Portugal. Esse mito caiu e ficou partido. Num país em que o jornal mais lido é o Correio da Manhã, os mitos fazem-se e desfazem-se rapidamente.

 

Os mitos, as narrativas, passam por modas, mudam consoante os intervenientes. Tudo parece colado com cuspo.

Temos uma crise cuja narrativa foi feita por economistas, quase todos posicionados à direita, em quase todos os jornais. As visões mudaram. Há pessoas que na altura disseram coisas que eram consideradas extremistas e esquerdistas e que hoje são consensuais. Impressionou-me a volatilidade das opiniões.

A crise do subprime, que depois passa para a Europa, chama-se “a crise da dívida dos países europeus”... Logo aqui está um erro: isto nunca foi a crise da dívida dos países europeus. Ajuda financeira? Qual ajuda? Depois passa para resgate. A escolha dos nomes vai mudando.

 

Mas as palavras ficam impregnadas no imaginário colectivo, e têm um significado.

Ficam. As personagens são crucificadas e salvas. O que aconteceu com o processo do Sócrates, a maneira como lhe caíram em cima, e agora, afinal, já não foi nada. Há uma necessidade, que tem mais a ver com os ciclos das telenovelas do que com uma investigação jornalística séria sobre as figuras em causa, [de alimentar a audiência].

 

O facilitador, o austero. Mais personagens-tipo.

No mundo dos média não podemos descartar o jornalista vedeta. O jornalista que é mais pivot que jornalista. As pessoas que se movem nos média e que fazem opinião e que são pessoas famosas mais do que pessoas com créditos profissionais.

 

Nos últimos 40 anos, sobretudo desde o aparecimento das estações privadas, a televisão deixou de ser um espaço ao qual só uns tinham acesso. O povo passou a estar na televisão, a vida de todos os dias passou a caber na televisão. Os heróis da televisão também mudaram.

A revolução foi tardia em Portugal. Tudo o que aconteceu nos anos 60, apanhámos em diferido. Há a revolução em 1974 e depois há aqueles anos muito politizados. Os nossos anos 60 chegaram nos anos 80. É então que temos saídas à noite, os bares, o Frágil, os primeiros estilistas, os primeiros pintores com saída internacional. A música pop cantada em português.

O culto da juventude aconteceu no fim dos anos 50 na América, com o Dylan, os Beatles, o Elvis. Cá ouvimos ecos disso, tivemos os nossos epifenómenos, dentro do espartilho salazarista. Mas é nos anos 80 que há a grande libertação da cultura jovem. Os heróis têm a mesma idade dos consumidores, ou são ainda mais novos.

 

Essa onda chega mais tarde à televisão. As privadas têm 20 anos.

Curiosamente tudo se passa muito lentamente na televisão. A SIC é de 92 e a TVI de 93. A televisão por cabo ainda é posterior. E começou sempre de maneira errada! Cavaco e Marques Mendes – é preciso não esquecer os nomes dos responsáveis – entregaram de mão beijada um canal à Igreja, em vez de fazerem um concurso.

Actualmente, do ponto de vista tecnológico, no que diz respeito às redes de telemóvel, de televisão, a penetração é altíssima. E tem uma qualidade extraordinária. O que as empresas de telecomunicações fizeram em Portugal é do melhor do mundo. Investiu-se tremendamente nesse sector. Se tivesse havido um centésimo desse investimento em conteúdos…

 

Em ideias.

Em ideias. Há uma coisa trágica que explica que não exista uma indústria de audiovisual desenvolvida. Não há uma política da língua sem uma política do audiovisual.

 

O audiovisual é o grande veículo para a cultura da língua?

É, através dos filmes, das séries. A língua portuguesa é o maior património que temos, é o activo mais valioso de Portugal junto com a costa marítima.

 

Um e outro parecem desaproveitados.

O que temos de patrimonialmente mais rico é o acesso ao mar, a extraordinária localização geográfica, e a língua. É neste momento a língua mais falada do hemisfério sul. Isto tem que ter um valor.

 

Ainda sobre a televisão: entre os habitantes de Viana de Castelo e os de Lisboa, que são diferentes, a televisão é um denominador comum. Mas a televisão, ela mesma, está em mudança.

O que aconteceu em Portugal não foi muito diferente do que aconteceu noutros países. Há uma progressiva separação do que são os canais e do que são os conteúdos. Vemos um filme ou uma série quando queremos, na plataforma que queremos, no ecrã que queremos. Isso obriga à redefinição do que é um canal. Antigamente ver televisão era pertencer a uma comunidade de pessoas que viam o mesmo que nós e que no dia seguinte, no trabalho ou na escola, falavam disso. Era óptimo fazer humor nos anos 80 porque se fazia humor sobre coisas que toda a gente viu.

 

Com a internet, o Youtube, a multiplicidade de plataformas e canais, essa concentração é impossível. Qual é hoje a lógica dominante?

É a lógica do directo, do que está a acontecer naquele momento, naquele universo, com aquelas personagens, daquele canal. É o programa da manhã, o programa da tarde, a televisão de companhia, o Big Brother. Toda a televisão se transformou num reality show. E tudo isto se confunde com a telenovela que é a ficção de companhia. É como se fosse uma vizinhança, um bairro – os canais de televisão estão a transformar-se nisso. Na indústria americana as séries ocuparam o lugar dos romances.

 

E mesmo do cinema. Os Sopranos, Homeland, Mad Men são hoje produtos tão ou mais sofisticados do que o cinema.

Sim. O cinema infantilizou-se, tornou-se juvenil. Quem vai às salas de cinema são jovens para namorar, ou famílias com crianças. E à noite em casa vêem-se as séries, que se tornaram complexas, densas.

O que é triste em Portugal é que cá isso não acontece. Há um empobrecimento da vida pública através do empobrecimento das televisões. A história da RTP é quase só a história dos apresentadores. Nunca houve um grande investimento em autores. E as coisas autorais de que nos lembramos mais são programas de humor. Uma das grandes derrotas do pós 25 de Abril é a televisão.

 

Para terminar, onde é que estava no 25 de Abril?

Tinha 11 anos. O meu pai estava a ouvir o rádio e disse: “Hoje não vais à escola. Parece que é desta”. A minha mãe respondeu: “Deus queira, já não vais à tropa”. No dia seguinte fui com o meu pai e o meu tio distribuir sandes aos militares. Foram as figuras masculinas da minha infância, o meu pai socialista, o meu tio comunista.

Depois fui para o [liceu] Pedro Nunes, que era o centro do MRPP. As aulas foram substituídas por comícios. Os professores eram saneados, havia militares que eram nomeados reitores da escola porque ninguém conseguia ter mão naquilo.

 

Uma politização precoce. Hoje, os meninos de 11, 12 anos estão alheados da política.

É. Lembro-me de um episódio. Eu estava a jogar à bola (que era o que adorava fazer no liceu), todo suado, e um dos meus grandes amigos disse-me: “Não tens consciência política nenhuma, já leste O Capital do Karl Marx?” [risos]. Senti-me absolutamente em falta. Tinha para aí 14 anos.

Toda a gente tinha partido. A turma era mais ou menos dividida entre MRPP, PCP, PS e PSD. Depois havia os fascistas do CDS [risos], que rondavam a escola com as suas motas e provocavam o MRPP. Eu e outros dois éramos anarcas. Pintávamos paredes, fazíamos slogans do tipo, “Vota na Abelha Maia”. Distribuíamos panfletos. Criámos uma banda rock que não existia. Fazíamos propaganda na casa de banho porque achávamos que era o sítio ideal.

 

Parece ter sido divertido.

Foi divertido. Para as pessoas da minha geração (tenho 51 anos), primeiro foi a educação salazarista que hoje parece surreal. Na Escola Primária nº13 de Campolide o professor batia com uma cana na cabeça dos alunos. Rezávamos a Maria no mês de Maio. De repente o 25 de Abril, a alegria. Depois a confusão política total, a possibilidade de guerra civil. E de repente a Europa. Começámos a viver bem, a viajar, o nível de vida sobe.

 

Três períodos distintos. E agora, a crise, o ponto a que chegamos 40 anos depois da revolução.

Sim. Primeira época, salazarismo. Segunda, o PREC. Terceira, Europa. Até esta história da troika, que nos obriga regressar uns anos para trás. É a quarta fase. Há uma enorme quantidade de pessoas da classe média que perdeu qualidade de vida e escorregou para níveis de pobreza. Todos têm à volta situações dramáticas de pessoas que tinham uma vida normal e que não vislumbram possibilidade de voltar a tê-la. Estão a tentar convencer-nos de que vamos sair da crise – não vamos sair.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

Ana Catarina Mendes e Adolfo Mesquita Nunes

20.04.14

São a geração de 70, nascida aquando da democracia. Não se envergonham de ser políticos porque tudo é política, como dizia Bertold Brecht. Isto num tempo em que ser político parece uma nódoa, e se vive a descrença nos agentes políticos e nas instituições. Como se chegou aqui? Quais foram os passos, quem foram os protagonistas?

O verso do dramaturgo alemão é trazido por Adolfo Mesquita Nunes, Ana Catarina Mendes concorda. Ele é secretário de Estado do Turismo, ela é deputada do PS. Não acham que os seus pais, a geração dos seus pais, tenha feito tudo fazendo a democracia. Abrindo a sua história, entram também na História do país, e do que é ser de esquerda e de direita nos 40 anos do 25 de Abril.  

 

 

Ana Catarina Mendes nasceu em 1973, Adolfo Mesquita Nunes em 1978. Onde é que os vossos pais estavam política e socialmente no 25 de Abril?

Ana Catarina Mendes – Eu morava em Abrantes. A minha mãe era professora e o meu pai era advogado e também professor. A minha mãe chegou à escola onde dava aulas e ouviu: “Ainda não se sabe se é um golpe de direita ou um golpe de esquerda, mas está a haver uma revolução”. A minha mãe vem de uma família de pai operário, alentejano, que vai para a Marinha Grande. Gente de esquerda, do Partido Comunista. O meu pai é filho de médico e farmacêutica vindos do antigo regime.

 

Numa sociedade tão classista, não era comum uma mulher de uma família comunista, filha de um operário, casar com o filho de um médico. Hoje a estratificação não é tão vincada, a separação esquerda/direita não é tão rígida, mas antes não se falavam.

ACM – É verdade. Quando a minha mãe sai de casa e vai trabalhar para Fátima, conhece o meu pai. Apaixona-se e em três meses casa. Isso dá origem a cartas de amigos a dizer que ela é uma traidora porque casa com alguém de outra classe. O meu avô escreveu no jornal da Marinha Grande dizendo que não tinha nada a ver com isso [risos].

 

Adolfo, os seus pais.

Adolfo Mesquita Nunes – Os meus pais eram muito novos. Tiveram-me com 22 e com 20 anos. A família do meu pai é da Covilhã. Chamo-me Adolfo, um nome pouco vulgar, por causa do meu bisavô, que fundou uma das maiores fábricas têxteis da região. Era uma família associada ao antigo regime, embora o meu avô fosse ligado aos católicos progressistas. A partir de uma determinada altura viu a revolução como algo positivo. O meu avô, que ainda é vivo, foi Provedor da Misericórdia durante décadas.

Se com o meu pai estava habituado a ver os Beatles e O Tempo e o Modo, a minha mãe ouvia Léo Ferré e lia Sartre. A minha avó materna lia Simone de Beauvoir. O meu avô materno, que depois foi do Partido Socialista e secretário de Estado nos governos provisórios, vinha de uma aldeia da Beira Alta, de um meio social muito, muito baixo. Foi a primeira pessoa da aldeia que fez o ensino secundário (e mais tarde doutorou-se).

 

De esquerda, portanto.

AMN – Sim. Os hábitos familiares, entre a família da minha mãe e a do meu pai, eram distintos, as referências eram distintas.

 

Como é que se tornou possível a co-habitação entre os dois?

AMN – Os meus pais conheceram-se muito novos e casaram muito novos. Deve ter sido uma altura extraordinária para se ter 20 anos em Portugal. Beneficiaram dessa circunstância.

 

Da ideia de que tudo era possível?

AMN – No caso da minha mãe havia um espírito de rebeldia muito presente e uma sensação de liberdade vincada. Politicamente sou o que sou porque conciliei a ideia de liberdade cívica da minha mãe, do ponto de vista das liberdades individuais, e a ideia de liberdade económica que veio da família do meu pai.

 

Provindo de um contexto semelhante, um posiciona-se à esquerda e outro à direita. Tanto quanto conseguem reconstruir, porque é que a Ana Catarina é de esquerda e o Adolfo de direita?

ACM – Temos referências que nos fizeram aquilo que somos. Cresci com a família da minha mãe. A casa dos meus avós maternos e a casa da minha mãe era palco de ex-exilados, ex-clandestinos, ex-presos políticos. O meu avó materno foi preso político, no Aljube. A presença da minha tia, que foi também uma revolucionária, é constante. A minha mãe leu Simone de Beauvoir, eu li Simone de Beauvoir, Sartre.

 

Uma casa muito politizada mesmo depois do 25 de Abril?

ACM – Sim. Pouco depois do 25 de Abril, o meu avô afastou-se do PCP. Foi convidado várias vezes para integrar listas do PS mas recusou. Passeava com os netos pelo pinhal, discutia os livros que nos oferecia. Numa dessas conversas eu disse: “Acho que me sinto um bocadinho comunista” [risos]. Lembro-me de histórias à lareira, de o meu avô contar como é que se fazia na prisão, de como é que se sabia que mais um tinha chegado. Todos aqueles códigos que ainda hoje me emocionam.

 

Outras referências de resistência?

ACM – Mais tarde, as histórias da Segunda Guerra Mundial. O primeiro contacto que tenho é no Les uns et Les Autres. Mas quando digo isto ao meu avô, ele responde-me: “As utopias fazem parte, mas precisas de ler umas coisas”.

 

A revolução não é um chá dançante, diziam. Era preciso substância.

ACM – Sim. E deu-me um livro que me marcou para sempre, “Enquanto há Esperança”, de um cubano que esteve 20 anos numa prisão de Cuba, de Fidel Castro. Os meus amigos comunistas ficam sempre zangados quando falo nisto.

 

Como é que a direita era vista na sua família materna?

ACM – A direita foi sempre vista como a opção que não ia ao encontro do combate às injustiças mas que agudizava essas injustiças.

 

Porque é que é de direita, apesar de uma parte da sua família ser de esquerda?

AMN – Não sou daqueles que acham que a classificação esquerda-direita está ultrapassada. No meu caso, a dicotomia que faço é entre liberais e socialistas. O entendimento que tenho do Estado é que este não deve reconhecer-me liberdade, deve limitar-se em função da minha liberdade. A liberdade é pré-existente ao Estado.

 

Foi fácil situar-se politicamente, encontrar a sua família ideológica?

AMN – Não. Consigo encontrar afinidades dentro de uma certa esquerda e dentro de uma certa direita. Mas convivi com os problemas relacionados com a falta de liberdade económica. Na Covilhã, onde passei a infância e fiz os estudos até vir para a faculdade, sofri, como muitos dos que trabalhavam na Covilhã, e que tinham as suas fábricas na Covilhã, as consequências pessoais das decisões políticas. Aquilo que me motiva do ponto de vista da participação política e pública são as questões das liberdades económicas.

 

Dá a cara pela defesa de outras liberdades, cívicas e pessoais. Foi contra o referendo à co-adopção, por exemplo. Isto vale-lhe o epíteto de enfant terrible do CDS.

AMN – Não posso fingir que não penso o que penso.

 

Porque é que são políticos? A geração dos vossos pais tinha um objectivo comum, sobretudo à esquerda: a luta pela democracia. A vossa geração é globalmente apática, desinteressada da política, num período em que tudo parece garantido.

ACM – Não houve logo uma apatia. Nos anos 80 vivo em Almada, época de Cavaco Silva. Almada é um concelho onde a Juventude Comunista tem uma presença muito forte nas escolas. A primeira vez que faço qualquer coisa de política, sem nenhuma juventude partidária comigo, é quando sou confrontada com a Prova Geral de Acesso. Era uma reforma tola no sistema de educação. Mobilizei a escola, 90% dos alunos fizeram greve.

Na campanha de Jorge Sampaio, em 1991, o meu irmão mais novo inscreveu-se na Juventude Socialista. O Jorge Sampaio era advogado de presos políticos. Senti-me impelida a participar. Mais tarde dinamizei a Juventude Socialista em Almada, que não existia.

 

Porque é que não é médico, industrial, seguindo uma tradição familiar, e veio dar à política activa?

AMN – Sou advogado. É quase provocatório, mas há um poema do Brecht, o Analfabeto Político, que diz que tudo é política. O preço do pão é determinado pela política. O que comemos, o que fazemos, é determinado pela política. Aqueles que desdenham da política (como sendo uma actividade com a qual não querem ter qualquer relação), parecem desconhecer que tudo é política.

Esta percepção, sobretudo para quem gosta tanto da liberdade, fez-me estar desperto para a política. Confesso que me filiei porque não havia outra forma de ter uma intervenção.

 

Em que ano é que se filiou?

AMN – Em 1994, por aí, estava no 10º ano, na Covilhã. Não havia blogues, não havia Internet, não havia forma de discutir, encontrar pessoas que pensassem o mesmo que eu. A minha forma de abrir a porta e poder fazer alguma coisa foi a política. Nunca estive em associações de estudantes nem em associações académicas. Filiei-me e tive sempre a preocupação de não ser político. Queria ser advogado, queria ter uma carreira.

 

Não queria depender da política, é isso?

AMN – A minha preocupação foi sempre a de não depender da política para poder vir embora quando quisesse. Curiosamente, a primeira polémica que tenho do ponto de vista público é por ter tido uma carreira. [Resulta de] se achar que quem teve uma carreira vem para a política defender interesses, defender os seus antigos clientes.

 

Vê-se como um advogado que eventualmente está na política?

AMN – Vejo-me como advogado. A política não é interessante durante muito tempo no seu exercício diário. Passa-se rapidamente de bestial a besta e de besta a bestial. Estamos, e bem, sindicados diariamente, e um erro nosso é treslido como se fosse algo catastrófico, um acto corrupto.

 

Está a falar da politiquice? De um jogo do qual se fica refém.

AMN – Não. É o exercício diário da política que envolve esta circunstância. Gosto muito de viver, e vivo mais livre e mais feliz se não estiver a ser sindicado pelos outros. Prefiro não estar preocupado com a forma como as pessoas me vêem, me lêem.

 

É uma visão da política distante da utopia.

AMN – Tudo é elevado a uma questão de vida ou morte política. De limite entre o Estado barbárie e o Estado de justiça social. De conflito entre os que estão ao serviço dos mais fracos e os que estão ao serviço dos mais fortes. É uma herança de uma geração. Não tem a ver com o 25 de Abril, tem a ver com os que viveram o 25 de Abril.

 

Ana Catarina, concorda?

ACM – Devemos muito a quem lutou para que tivéssemos o 25 de Abril. Defendo uma democracia republicana onde as liberdades individuais são aceites, onde a crítica é aceite e onde a possibilidade da paz perpétua se faz no confronto de ideias. Mais do que há uns anos, as pessoas estão apáticas. Há uma crise de confiança em todos nós, nos agentes políticos. Mas não nos envergonhamos de ser políticos porque tudo é política, como dizia o Brecht.

AMN – Ainda estamos muito politizados em matérias onde podíamos encontrar consensos, e isto com culpas de parte a parte. Opções políticas legítimas, e que a esquerda defende noutros países, aqui são tratadas, porque vêm da direita, como se fossem opções dramáticas.

 

Apontemos grandes momentos e grandes figuras destes 40 anos. No fundo, peço que façam um mapa daquilo que enquadrou a vossa vida e determinou os vossos percursos.

AMN – As nacionalizações. A nacionalização é, à luz das experiências internacionais já conhecidas, um erro catastrófico. Nenhum dos países dos quais ambicionávamos aproximar-nos tinha economias nacionalizadas. Foi uma minoria que as impôs. É um erro que ainda hoje estamos a pagar. É verdade que Mário Soares teve um papel insubstituível – tanto é que as nacionalizações fossem revertidas.

ACM – Seguramente houve erros. Mas é bom perceber que partíamos de 48 anos de ditadura, de uma asfixia total. Os exilados políticos, os emigrantes, as famílias que todos os dias perdiam um membro na Guerra Colonial – tudo isto deixou marcas nos primeiros anos da instauração da democracia.

AMN – A necessidade de devolver à sociedade a liberdade política e cívica: estou inteiramente de acordo. Mas a revolução deveria permitir, além disto, uma liberalização da economia. Isso não sucedeu.

 

As nacionalizações – primeiro momento apontado por Adolfo Mesquita Nunes. Que momentos apontaria, Ana Catarina Mendes? Pensemos em mudanças políticas.

ACM – A primeira de todas é a impossibilidade de a revolução se tornar uma ditadura comunista. Soares permitiu que tivéssemos a democracia. O modelo que Cunhal queria para Portugal teria sido desastroso.

AMN – Atenção: não menosprezar o povo português.

ACM – E todos os esforços de trazer a democracia para Portugal teriam sido em vão. Lembro-me das lágrimas que se choraram na casa da minha mãe em 1989 com a queda do muro de Berlim, pelo horror do que se via do outro lado. Felizmente não tivemos um muro em Portugal. Esses anos do PREC são anos decisivos, e permitiram o espectro partidário que hoje temos.

AMN – Concordo com a Ana Catarina. Não sou daqueles que pretendem substituir as comemorações do 25 de Abril pelas do 25 de Novembro, mas sou dos que consideram que só no 25 de Novembro é que a revolução se reconciliou com a sociedade portuguesa. Outro momento decisivo: a entrada na CEE, em 1986.

 

É o que marca os anos 80?

ACM – É um marco histórico. Uma pessoa que também estimo muito, Medeiros Ferreira, teve um papel extraordinário nessa altura. Foi o fim do isolamento, é a fractura com o conceito “orgulhosamente sós”. É a possibilidade de circular, de ter mundo. Destacaria também, no início dos anos 80, a primeira discussão sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). É o primeiro grande confronto de esquerda e direita.

 

Houve uma mudança no papel das mulheres, das crianças, dos homens. O que é que destacariam ao nível dos costumes e da vida privada, na sociedade portuguesa, nos últimos 40 anos?

ACM – A igualdade de género. Os meus pais divorciaram-se tinha eu oito anos. Em Abrantes não havia pais divorciados. Há 30 e tal anos isto era um estigma e deixou de ser. A minha avó estava em casa. A minha mãe e a minha tia já fizeram a sua vida, os seus cursos. Hoje, a emancipação feminina é um dado adquirido. Outras mudanças significativas no domínio das liberdades individuais que imprimimos na sociedade portuguesa nos últimos dez, 15 anos: as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo a possibilidade das uniões de facto; a questão da IVG e da liberdade de decidir; o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

 

O que é que destacaria na sociedade portuguesa como significativamente diferente?

AMN – Sou menos optimista relativamente ao poder da lei do que a Ana Catarina.

ACM – Nem estava a pensar na perspectiva da lei. As mentalidades foram mudando. Em relação à IVG, a discussão faz-se no início dos anos 80, acalorada, dura e predadora para os que defendiam a despenalização, e só em 2007 é que conseguimos ter uma lei de despenalização.

 

Primeiro mudaram as mentalidades e depois a lei?

ACM – Demorámos muito tempo, porque entretanto morreu muita gente por causa do aborto clandestino. Mas foi a mudança de mentalidades que determinou o referendo e consequentemente a lei.

AMN – Durante décadas utilizou-se o Estado para propagar uma visão maioritária de família, daquilo que deviam ser os valores em sociedade. Se abrimos espaço, temos de o fazer para todo o tipo de noções, e não impor um modelo de família. Não queremos trocar o modelo de família conservador (o que quer que isso queira dizer), e dizer que o valor certo é outro. Temos que permitir que na sociedade portuguesa convivam vários tipos de vivências desde que não prejudiquem terceiros.

 

Quais são os grandes protagonistas destes 40 anos?, quem são aqueles que vão figurar nos livros de História?

AMN – A Ana Catarina vai dizer o Mário Soares e eu concordo [risos].

ACM – É uma figura incontornável. Álvaro Cunhal foi um vencido, mas tem o seu papel, também. Estávamos a falar da despenalização da IVG na alteração dos costumes: a Natália Correia. O Botequim tem um papel na história. A Maria de Lurdes Pintasilgo.

 

Por ser a primeira primeira-ministra mulher?

ACM – Sim, e isso significa também uma mudança na sociedade.

 

Está a evitar dizer Cavaco Silva?

ACM – Fui e sou muito crítica de Cavaco Silva presidente da República. E fui extremamente crítica de Cavaco Silva primeiro-ministro. Nos momentos em que podíamos ter tomado opções, também económicas, com o novo mundo da Europa, o caminho escolhido por Cavaco Silva foi todo ele errado. Não sei se estou a evitar [apontá-lo], mas não o vejo como protagonista dos 40 anos da democracia. Os discursos do 25 de Abril de Cavaco Silva são arrepiantes do ponto de visto do que podia ser, e devia ser, a consolidação da democracia.

Mas não evito dizer o nome de António Guterres. E de um conjunto de ministros do seu Governo que imprimiram transformações importantes. José Sócrates, enquanto ministro do Ambiente, foi um desses protagonistas.

 

Sabe que Sócrates não vai figurar nos livros de História enquanto ministro do Ambiente.

ACM – Cavaco Silva é uma figura que me deixa inquieta. Representa sempre cinzentismo.

AMN – Há figuras nos últimos 40 anos que são muito importantes, mas já o eram antes do 25 de Abril. A Agustina, que retrata uma certa forma de Portugal, e que admiro muito; é a mesma antes e depois da revolução. No pós-revolução há duas personalidades e uma instituição que foram essenciais. Marcelo Caetano, Mário Soares e a Igreja Católica.

 

Porquê essa escolha?

AMN – A revolução precisava de uma paz social que permitisse uma revolução sem sangue. A percepção que Mário Soares teve, que a Igreja Católica teve e que Marcelo Caetano teve permitiram criar a minoria silenciosa que vai ser vencedora no 25 de Novembro. Mário Soares percebeu que a Igreja Católica, que tinha sido a argamassa do estado novo, tinha, de certa forma, de ser a argamassa da nova ordem. E temos muitos católicos progressistas no Partido Socialista e no PSD. Isto foi importante para permitir, apesar dos delírios do PREC, a paz e a aproximação à Europa.

 

Como justifica Marcelo Caetano entre os três que referiu?

AMN – Pela forma como saiu. Outros nomes: Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.

 

Nomeia-os por serem de direita?

AMN – Não. O modo como morreram determinou a sua presença nos 40 anos da nossa história. [Nomeio-os] por aquilo que uma certa sociedade portuguesa, e foi muita, projectou neles. E porque criaram a verdadeira alternância democrática. Até lá só o PS é que podia ganhar as eleições.

 

Sá Carneiro e Amaro da Costa representavam uma direita moderada, poucos anos depois da revolução que pôs fim à ditadura.

AMN – Era muito importante à sociedade portuguesa sentir que era possível alternar entre dois projectos políticos que não iriam pôr em causa o adquirido da revolução. E quando foi possível ter governos maioritários do PSD e do CDS, e a revolução não voltou para trás, isso foi também importante para a consolidação do processo democrático. Claro que a sua morte abrupta agiganta esta relevância porque nos permite projectar o que queremos neles.

Desde que entrámos na União Europeia, nenhum governante marcou, por muito boa que tenha sido a sua acção, [os livros de História].

 

Está a dizer, em resumo, que o protagonista político é a Europa, mais do que os políticos que integraram os nossos governos?

AMN – A partir do momento em que entrámos na União Europeia, que entrámos numa certa estabilidade – apesar de tudo com opções ideológicas diferentes e polémicas –, o consenso europeu e o consenso de um certo modelo económico e de respeito pela iniciativa privada, fez com que todos os governos tenham [governado] sem uma ruptura que nos fizesse dizer: “Aquela pessoa vai ficar na História porque a partir dela fez-se alguma coisa”.

ACM – Não concordo com o papel da Igreja Católica [nestes 40 anos]. Não acho que tenha sido determinante. E se é verdade que depois da entrada na União Europeia esta clivagem [política] se foi esbatendo, não é menos verdade que o fim da era cavaquista, em 1995, é uma marca muito ideológica. A marca que Guterres deixa é uma marca social que não ficou vincada nos anos de Cavaco Silva.

 

Prometeu-se tanto, fez-se tanto. Evidentemente muito ficou por fazer e muito do que foi feito não foi bem feito. É preciso meter mãos à obra em relação a quê?

AMN – Não é possível comparar as condições em que vivemos hoje com as condições em que vivíamos antes do 25 de Abril. Diria que o maior desafio que temos é o de criar condições para que o nosso contexto de nascimento não seja tão determinante nas nossas hipóteses de futuro. Não temos instrumentos suficientes nem criámos um modelo político, social, cultural, de integração, que permita sair das limitações do nosso contexto.

 

Está a dizer que não somos meritocráticos e que temos que passar a ser.

AMN – E não só. Se olharmos para o tecido social português e se olharmos para o tecido político, não encontramos diversidade nenhuma. Não encontramos diversidade religiosa, étnica. Com vagas sucessivas de imigração continuamos a ter nas nossas magistraturas, no nosso parlamento, no nosso Governo, nos nossos escritórios de advogados portugueses, brancos. Ainda não criámos um ambiente propício para arriscar. Esse é um fracasso.

ACM – Há uma degradação da classe média que foi sendo construída ao longo destes 40 anos. Há um desinvestimento, que é hipotecador da qualidade do país nos próximos anos, na educação. Há uma apatia muito grande. Não apatia política, mas partidária. Há uma desconfiança nas instituições, nos protagonistas. Estamos a falhar na explicação do sentido da política.

 

Isso é perigoso.

ACM – É. Não estamos a conseguir que as pessoas encontrem no poder político a firmeza para combater este ciclo. Isto leva a sentimentos de nacionalismo e de individualismo que podem fechar a democracia que queremos construir há 40 anos.

AMN – Nada tenho contra o individualismo. Recentemente Francisco Assis escreveu no Público sobre o facto de não sabermos dignificar a democracia. Estamos a dar palco...

ACM – A quem não acredita nela!

AMN – E a quem faz do ataque à política um modo de vida. Um modo de vida fácil e de aplauso fácil. Os agentes políticos (e isto não tem a ver só com partidos, tem a ver com as nossas instituições) não têm sabido lidar com esta questão.

 

Têm um herói? Todos precisamos de heróis e os grandes momentos da história são quase sempre inspirados por alguém, por personagens, mitos. Às vezes, pessoas que temos ao lado.

AMN – O meu avô paterno. Mas não explico.

ACM – Penso sempre numa figura porque nele homenageio os anónimos todos que tornaram possível a democracia: o meu avô materno. Não o coloco como herói, não gosto muito dessa expressão, mas é uma referência.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

Manuel Alegre

16.04.14

“Portugal, país de poetas” é uma frase feita. Nem por isso falsa. Para que serve a poesia quando falta o pão? Manuel Alegre é um poeta e um político que se candidatou duas vezes à presidência da República. Além de tribuno e resistente, de voz tonitruante. Toda a gente se lembra da primeira candidatura, em 2005, quando conquistou cerca de um milhão de votos.

É um poeta que olha para um país em fanicos e que escreve coisas assim: “Irmãos meus que passais um mau bocado/ e não tendes sequer a fantasia/ de sonhar outro tempo e outro lado”.

É um poeta e um político com quem é possível falar de Heitor, o mais comovente dos heróis da literatura, e duas linhas abaixo da geração a que pertencem Sócrates e Passos Coelho. Das fúrias e revoltas que o fizeram ser político. Do tempo em que não sabia se voltava, da prisão, do exílio, de fora.

Viveu o tempo das grandes utopias. Tem 75 anos e acaba de lançar um novo livro de poesia, Nada está Escrito. E então, falamos de poesia? Sim. E de política? O tempo todo. E do que mudou desde o tempo em que ele acreditava que era possível viver o paraíso na Terra.

Em casa tem muitos livros. E marcas de uma vida em que o sonho era a intervenção, e não o enriquecimento.  

 

No poema que encerra este livro escreve: “País é um café e a mesa a um canto/ onde um poeta sonha e escreve e é Portugal”. É uma boa introdução ao que Portugal é?

Estou a falar de Fernando Pessoa, do Café Martinho. E da Ode Marítima que provavelmente foi escrita ali. Não sei se sem poemas há país. A poesia tem muito a ver com Portugal, com a afirmação da nossa identidade e com a língua. A língua é a maior riqueza que temos. O português que falamos e escrevemos é o que Camões escreveu n’ Os Lusíadas. Os heróis não são heróis míticos; é o próprio povo português e a viagem de Vasco da Gama. São heróis de carne e osso, pessoas verdadeiras.

Há um poema da Hélia Correia onde, citando Hölderlin, diz: “Para que servem os poetas em tempo de indigência?”.

 

Boa pergunta. Para quê?

É para escrever poesia. Neste tempo em que a língua está invadida pela cultura do número, das taxas de juro, das cotações bolsistas, escrever poesia – para falar de amor, da existência ou da não-existência de Deus, para procurar o sentido das coisas – é um acto de libertação da linguagem. É um acto de resistência. Não creio que haja mudanças sem a poética da mudança. Também não há revoluções sem a poética da revolução, mesmo que os poetas venham a ser vítimas da revolução (como aconteceu na revolução russa). A poesia neste momento é uma necessidade.

 

Vivemos tempos de indigência, portanto.

Indigência em todos os sentidos. Cultural, política, até literária. É um tempo muito unidireccionado.

 

E comandado.

Sim. A economia sobrepôs-se à política, não há espaço para mais nada. Vivi outros tempos: ditadura, guerra colonial, exílio. Tempos muito difíceis. Mas acabavam por ser mais fáceis. Havia um horizonte. Havia a convicção de que mudando a política se mudava a vida.

 

Havia também um inimigo com uma face definida contra o qual lutar.

Agora são inimigos invisíveis. Preferia ser ocupado por um exército estrangeiro do que estar a lutar contra esta ameaça invisível – os especuladores, os mercados, que invadem a nossa vida. Uma coisa que me faz impressão na juventude é a falta de sonho. Esse é o papel da poesia, como foi na minha geração. Procurávamos esse horizonte mais além.

 

Por que é que acha que tão rapidamente se chegou aqui? Esta entrevista é feita uma semana antes do 25 de Abril, e terão passado apenas 38 anos sobre o começo desta nova era. Não parecia crível para as pessoas da sua geração, em 1974, que no ano 2012 estivéssemos a usar a palavra indigência para descrever estes tempos.

Já vivi muitos ciclos. Nunca nada é definitivo, na vida pessoal ou colectiva. Trinta e oito anos é pouco tempo e é muito tempo. Quando estava no exílio dizíamos que tinham passado 30 e tal anos de salazarismo; uma enormidade. Agora a democracia tem 38 anos e parece-nos que foi ontem. Naquilo que o 25 de Abril se propunha ser, é uma revolução vitoriosa. Fez a democracia, a descolonização e o país desenvolveu-se.

 

Os três “D” foram cumpridos.

Houve várias revoluções e contra-revoluções no 25 de Abril. Os que queriam fazer uma revolução para instaurar um modelo de tipo soviético ou cubano. Os que queriam fazer uma coisa chilena. Foram derrotados. Com a queda do Muro de Berlim muita gente julgou que tinha chegado a hora da social-democracia. Mas não. Tinha chegado a hora da globalização, do triunfo absoluto do capitalismo, do poder financeiro sobre todos os outros poderes. Foi o que nos trouxe a esta situação.

 

Nestes 38 anos, mais do que tudo, foi a queda do Muro que desequilibrou as forças e dinamitou uma certa ordem social, política e económica?

O Mitterrand dizia que pior que o equilíbrio do terror é o desequilíbrio do terror. Não estou a dizer que o modelo da União Soviética fosse bom. Estou a dizer que havia um contra-peso. Depois da queda da União Soviética e do Muro de Berlim a social-democracia europeia, mundial, não se afirmou. Foi até cúmplice do neo-liberalismo. Deixou-se colonizar. O capitalismo, que noutros tempos tinha a sua ética, ficou sem regras.

Há esta crise, que toda a gente diz que é a maior depois da crise de 1929. As forças políticas que se reclamam da ideologia que está na origem da crise, ganham as eleições. A esquerda, perde as eleições em todo o lado. É um paradoxo.

 

Mas a esquerda, nomeadamente o PS, tem sido responsabilizada por, ao longo de 15 anos, ter conduzido o país à situação em que actualmente se encontra.

O PS já foi julgado, já perdeu eleições. Antes tinha havido Cavaco Silva e o desperdício brutal. Durante dez anos entraram rios de dinheiro. Claro que se fizeram auto-estradas e infraestruturas, mas perderam-se oportunidades. E houve muitos negócios e trapalhadas que vieram acabar nesta triste história do BPN. O que houve foi uma mudança do mundo. Havia um pacto social nascido no pós-Guerra: a democracia política com justiça social. Um pacto entre socialistas e democratas-cristãos que está a ser rasgado.

 

Quando é que esse pacto se exauriu?

A partir da queda do Muro de Berlim. As pessoas foram-se endividando, os bancos foram assediando as pessoas. E os bancos também se foram endividando. Criou-se nas pessoas o sentimento de que não há outras soluções. Isso é terrível, leva ao conformismo. Leva as pessoas a ficarem vergadas, deprimidas.

 

Há um verso muito forte, quando diz: “Aconteceu-me o pior: o esquecimento”.

Há outro poema em que digo: “As ruas cheias de gente e as pessoas desertas”. A cidade mudou. Há uma depressão. Estão a ser exigidos sacrifícios brutais. E as pessoas acham que isto vai piorar. Perderam o sonho. Esse é que é o papel da poesia. Eu próprio escrevi dois livros durante a ditadura que foram apanhados pela censura.

 

Praça da Canção tornou-se num livro-referência.

Os versos foram cantados, por Zeca Afonso, Manuel Freire. E isso acabou por ter uma grande influência no despertar da consciência democrática das pessoas – mais do que o discurso político. Creio que um poema hoje, ou uma canção, pode ser mais eficaz que um discurso político.

 

A palavra era mesmo uma arma.

Era. Mas não tem que ser um poema político. Nunca escrevi poemas políticos. Pode ser um poema de amor.

 

Enquanto gérmen para incutir a mudança e a esperança nas pessoas?

A vida não tem que ser esta coisa penosa, de um quotidiano que se repete, de um país em “inho”, como dizia o Teixeira de Pascoaes. A vida tem que ter outra dimensão. Não é possível viver sem esperança, sem sonho.

 

Quando é que em si morreu esperança?

Não morreu. Não sou capaz de viver sem esperança. A esperança é difícil, constrói-se. Muitas vezes o optimismo tem que passar pelo pessimismo, pela consciência de que as coisas são difíceis e de que é preciso mudá-las. Neste momento não há grandes razões para ter esperança. Não há respostas, não há milagres. Mas há uma coisa que se chama vontade, inteligência. E aquilo que alguns disseram noutras circunstâncias: “Sejamos realistas, vamos fazer o impossível”.

 

Precisamos de bater no fundo do poço para ter ganas de fazer o impossível?

Já estamos a bater no fundo do poço! Isto pode ser outra vez tempo de revoluções e de contra-revoluções, de grandes explosões sociais.

 

Tem sido feito o paralelismo, não só com a crise dos anos 30, mas com tudo o que veio depois. Com o espaço dado para os totalitarismos, nomeadamente.

O império austro-húngaro desfez-se. Desfizeram-se muitos impérios. Ninguém controla a História e às vezes a História descontrola-se, acelera.

 

Como se fosse um corpo em convulsão que não conseguimos deter?

Se continuar assim, o que é que vai ser daqui a três ou quatro anos? É imprevisível.

 

Quando perguntava quando lhe morreu esperança, não me referia à Esperança mas a partes que sempre ficam maculadas. Estava perguntar até pelas decepções.

Na nossa juventude era o tempo das grandes utopias. Vivíamos quase cegamente, tangidos por uma história que soprava num determinado sentido. Depois veio o tempo da lucidez, do confronto com a realidade. Já passei por muitas coisas. É preciso saber ler os sinais. Isso é um dom dos poetas, a vidência de que falava o Rimbaud. Poesia e profecia estão ligadas. Mas Rimbaud também dizia que a palavra poética, por efeito mágico, pode mudar vida.

 

Como ouvir os poetas e reconhecer os sinais quando somos submergidos numa torrente? E parece que contra ela somos impotentes.

Um grande poeta provençal, Arnaut Daniel, dizia que é preciso escrever contra a corrente. As grandes obras poéticas muitas vezes são escritas contra a corrente.

 

Este seu livro é contra a corrente?

É próprio da poesia subverter o discurso instituído, abrir brechas nas gramáticas da obediência e do conformismo.

 

Estou a falar com um homem de 75 anos, que passou por acontecimentos muito fortes toda a sua vida.

A minha vida foi intensa, tensa e densa [riso].

 

Explique-me cada um desses adjectivos.

Foi uma vida agitada. Vivi a ditadura, a luta estudantil, a luta contra o regime, a Guerra Colonial, a prisão, o exílio. E quando voltei não tivemos logo paz. Tivemos a festa do 25 de Abril, mas tivemos aqui grandes confrontos.

 

Nos últimos anos há as duas candidaturas à Presidência, a saída do Parlamento, e uma relação com o seu PS que não é a que teve durante décadas. Ainda que o seu objecto poético não seja o objecto político, às vezes as linhas cruzam-se.

Vivi sempre contra a corrente. Tenho um livro chamado Contra a Corrente, mas é um livro de textos políticos. A vida e a escrita são inseparáveis. A poesia não são só sentimentos, são partidas, desencontros. Para chegar a um verso é preciso ter passado por cidades, por países, por amores e desamores. A vida que vivi e a vida que estamos a viver está também nos poemas em que falo dos meus passeios pela cidade.

 

No poema de abertura, Balada dos Aflitos, diz: “A luz que nos guiava já não guia/ somos pessoas – dizeis – e não mercados”. Qual é essa luz?

Estava a referir-me aos tempos da juventude, da utopia. Para mim, a política nunca foi um sucedâneo da religião. Tive sempre um espírito crítico. Além de Marx li, muito António Sérgio, grande mestre, hoje esquecido. Falava da necessidade de combater o sectarismo, o dogmatismo. Havia um horizonte de claridade. Isto agora está bastante sombrio. Embora sejamos um país do sol e do sul, parece que querem fazer de nós um país luterano e puritano.

 

Está a vincar uma diferença cultural, que assenta muito na religião e na geografia.

A atlanticidade é a nossa identidade. A cultura passa pelo vinho, pelas areias, por essas coisas que agora querem fiscalizar demais. Hábitos muito diferentes de países que não têm sol, que têm tectos baixos.

 

Mas quem tem a guita são os luteranos.

É por isso que isto está triste. Não creio que seja possível aguentar por muito tempo.

 

Não deixa de ser curioso que tenha sido Hölderlin, um alemão, a falar de tempos de indigência, ainda que num contexto completamente diferente.

É verdade. É um país estranho. Goethe, Schiller, grandes músicos. Mas também Auschwitz, Birkenau, Sachsenhausen e essas coisas horríveis feitas com uma terrível racionalidade. Feitas com um espírito burocrático, frio. O mundo e as pessoas não podem ficar as mesmas depois de Auschwitz. O mal absoluto, como disse Malraux. A Alemanha tem essa eficiência que assusta. A verdade é que já destruíram duas vezes a Europa, e a si próprios. Agora não estão a usar armas nem a fazer nenhuma ocupação militar, mas estão a fazer uma ocupação ideológica.

 

A Alemanha e os banqueiros tornaram-se nas figuras odiosas deste tempo?

Não tenho qualquer dúvida. Não estão a fazer Auschwitz nem a praticar o culto da morte, mas estão a destruir um modelo político, democrático. “O estado social acabou”, disse Mario Draghi. Estão a aproveitar esta crise para pôr em causa direitos e conquistas sociais que demoraram muito tempo a construir. No pós-Guerra, era a economia de mercado mas com direitos sociais, com serviços de saúde, educação. Agora, a pretexto do equilíbrio da contas públicas, o que vemos é o BCE a emprestar aos bancos a um por cento para os bancos depois emprestarem aos Estados a taxas elevadíssimas.

 

E é aí que os bancos se tornam na figura odiosa?

É isso que é preciso mudar, o papel do BCE. Ou então nunca mais há Europa. Somos um país sebástico. Estamos sempre à procura de D. Sebastião, e agora passámos de D. Sebastião para a França. François Hollande não tem grande perfil de D. Sebastião. Mas se ganhar vai abrir uma brecha na muralha. Ele disse, e bem, que era preciso que o BCE começasse a emprestar aos Estados directamente.

 

Tanto quanto consegue reconstituir esse tempo, como é que não havia medo do futuro, qualquer que ele fosse? Hoje há um enorme medo do futuro.

Porque há uma ausência de futuro. No meu tempo os estudantes podiam ser presos, torturados, mas sabiam que terminado o curso não tinham um problema de emprego. A guerra da juventude hoje é não ter emprego.

 

Nesse caso, não ter emprego, acaba por ser uma primeira configuração do medo.

Tudo é precário. Não se sabe que futuro se vai ter, mas há a ideia de que nada é certo. Há um muro à frente das pessoas.

 

Se falavam de um eventual medo, que face é que ele tinha?

O medo no Portugal que vivi era o medo de ser preso, de ser torturado. Quem viveu isso ainda hoje tem pesadelos. A guerra. Punha-se o problema não só de morrer mas de ter que matar. E o medo de ter que fazer outra escolha, deixar o país e ir lá para fora. Foi um período muito difícil, o do exílio.  

 

Fale-me disso. Uma coisa são as coisas vividas a quente. Outra, passados 50 anos, é pensar naquilo que o marcou nessa experiência.

O que mais me marcou foi a sensação de uma grande insegurança. Não tínhamos família, não tínhamos o amparo de quem está no país. Depois, como era uma figura conhecida e marcada pela polícia, insegurança pessoal. Estava no livro negro, podia ser abatido. Sobretudo: marcou-me o não saber se um dia voltaria. O regime já tinha durado tanto, tinha havido tantas tentativas falhadas. Tinha vivido a campanha do Delgado. Assisti ao maior levantamento nacional. Nem no 25 de Abril! Parecia impossível que ele fosse perder. Quando ouvi os resultados na rádio, transformei-me num resistente, num militante revolucionário. Senti-me roubado por dentro, na minha alma.

 

Por que é que diz que foi uma reacção popular mais forte do que a do 25 de Abril?

O 25 de Abril já era a vitória, ali foi uma grande esperança e uma grande promessa. A convicção de que aquele homem ia dar a volta a isto. Ele levantou o povo português, teve esse mérito. Às vezes via-o fazer discursos em que não falava, só agitava os braços [riso].

 

Pensou muito no Delgado nas suas candidaturas?

O Delgado marcou muito a minha vida. Pedem-me muito que escreva a minha autobiografia; é muito complicado. Há sempre um risco de justificação e de ocultação. Pela ficção, às vezes, é-se mais verdadeiro. Em todos os livros de prosa que escrevi, lá vem o Delgado. Não posso esquecer a chegada dele a Coimbra em 1958. Um homem muito alto, que estava ao pé de mim, com um filho pequeno nos braços, quando o Delgado passou, levantou-o, e com as lágrimas pela cara abaixo disse: “Ó meu general, salve o meu filho dos tiranos”. E depois a morte do Delgado. Foi o único general que morreu num campo de batalha. Gostava de um dia fazer um filme sobre o Delgado, se tivesse vocação de cineasta.

 

No seu livro fala de guerreiros. Achei que há poemas de guerreiros tombados e de homens que caminham para o fim.

Aí estou a falar de Tróia e de Heitor. Escolhi Frederico Lourenço para apresentar o meu livro. Ele traduziu a Odisseia (grande metáfora da vida humana – a errância, a procura de Ítaca) e fez-me descobrir em língua portuguesa a Ilíada, o mais fantástico poema que até hoje se escreveu. O grande herói de Homero não é Ulisses nem Aquiles, é Heitor.

 

Que é um perdedor.

Mas é humano. Defende a sua terra, a sua família com o barro da sua humanidade. Não foi gerado por nenhum deus e não era um perdedor nem um matador. Sendo vencido, é um vencedor eterno.

 

Heitor é uma espécie de herói para si?

É. Vai lutar para defender a sua dignidade, sabendo que não vai lutar com armas iguais, sabendo que não é imortal e que pode ser derrotado. Apesar de tudo, luta.

 

É possível fazer uma extrapolação do seu interesse pelo Heitor para outras batalhas que tenha empreendido?

Desde miúdo que tenho uma atracção por aqueles que travaram combates desiguais, e que marcaram a história sendo vencidos. D. Pedro é a referência cimeira da nossa história. É ele que abre caminho às navegações. Viajou pela Europa toda, foi o primeiro grande europeu. E foi durante a regência dele que Portugal dobrou os cabos e foi para longe. Toda a estratégia dos Descobrimentos é com ele. E no entanto morreu em Alfarrobeira, por intriga.

 

Quais é que foram as suas vitórias e as suas derrotas?

Um vitória desportiva (aí não há batota): fui campeão de Portugal de natação, na Praia das Maçãs em 1956 ou 57. Subir ao pódio marcou-me.

 

Não há batota significa que é uma vitória indiscutível?

Sim.

 

Agora, uma vitória discutível mas que tenha sentido como sendo uma vitória.

O sucesso que tiveram os meus livros. A Praça da Canção, o livro mais difundido em vida do autor. O 25 de Abril é uma vitória colectiva para a qual dei uma quota-parte. Dei uma contribuição com aquilo que escrevi, com as emissões de rádio que fiz. O dia em que foi aprovada a Constituição. Foi um dia muito emocionante, é o triunfo da democracia.

 

O primeiro milhão de votos?

Gostei da primeira campanha que fiz, foi uma coisa bonita, pioneira. Ter ficado a 29 mil votos da segunda volta foi uma derrota que teve um sabor de vitória.

 

Quando saiu de casa para ir votar – agora já pode dizer – acreditou que ia passar à segunda volta, que ia ter aquele resultado?

Sim, sim. Tinha sentido isso na rua. Não tinha vontade nenhuma de ser candidato à Presidência da República. Tinha sido abordado pelo Sócrates, e outros, mas nunca foi o sonho da minha vida.

 

Porquê?

Vivi sempre dividido entre a escrita e a política. As coisas estiveram sempre cruzadas. Tinha noção de que uma opção ia mutilar uma parte de mim mesmo. Depois recebi mensagens de todo o lado que mostravam bem o sentimento das pessoas relativamente ao estado das coisas. Por revolta e indignação resolvi candidatar-me. Sabia que ia ser muito difícil, mas sabia que ia ficar em segundo.

 

Tinha medo de ser um perdedor sem o heroísmo do Heitor? Há algumas derrotas que são apenas derrotas. Isso perseguia-o?

Não. Quando decidi candidatar-me sabia que podia fazer um grande resultado. As pessoas ficavam um bocado impressionadas, mas tinha essa convicção.

 

Como?

Antenas poéticas, o contacto das pessoas – são sinais.

 

Estávamos a falar das vitórias; e as derrotas?

A última eleição presidencial é uma derrota. Não tenho essa contabilidade feita. Na política vivi muitas vitórias e muitas derrotas, mas teve sempre um lado colectivo.

 

É diferente quando se vai a votos sendo cabeça de cartaz...

Fui sempre a votos. Fui muitas vezes cabeça de lista em Coimbra.

 

Isso é diferente de ser candidato a primeiro-ministro ou a Presidente da República. Tem-se um protagonismo diferente.

É muito difícil ir a votos naquelas circunstâncias. Fui a votos tendo o Cavaco Silva de um lado e o Mário Soares do outro. A primeira eleição não foi uma derrota, foi um facto que abriu novos horizontes. E começaram a surgir discípulos, há mais gente a fazer isso.

Na segunda, em termos aritméticos é uma derrota, mas foi muito mais difícil. Tinha o apoio do Partido Socialista, em crise, e tinha o apoio do Bloco de Esquerda. Uma parte do Partido Socialista não votou em mim por ter o apoio do Bloco de Esquerda. Parte do Bloco não votou por eu ser socialista. A minha candidatura nasceu de um movimento cívico, das pessoas que tinham estado associadas à primeira candidatura. Mas não tinha a euforia, a vontade...

 

Também percebeu que era a sua última hipótese.

Fui um bocado empurrado pelas circunstâncias. Para mim o que conta é travar ou não o combate. Nunca programei a minha vida. Quando tinha 20 e tal anos a minha carreira podia ser um tiro na guerra, ou ser preso e torturado, ser morto numa emboscada.

 

O que é que se encontra no combate? O que é que sabemos de nós mesmos no combate?

É a satisfação pelo que se está a fazer.

 

É um sentimento de dever?

É. E a responsabilidade cívica. É uma exaltação difícil de definir. Tenho gosto no combate. É o lado da política de que sempre mais gostei, do risco. Hoje é tudo muito programado. É tudo visto em termos de carreira pessoal, de vitória pessoal. Ser líder de um partido, ser candidato a primeiro-ministro, sem que as pessoas se perguntem o porquê. Para mudar a sociedade? Para fazer uma revolução? Vejo nos políticos muita cautela, muita programação.

 

Um político que encaixe nisso, pode apontar?

É uma questão geracional.

 

A geração de Sócrates ou Passos Coelho?

Já vem antes. A do Guterres. Acaba com Jorge Sampaio. A partir daí tudo é feito com racionalidade, a pensar na imagem, na sondagem, no sucesso. Quando travo um combate gosto de ganhar. Fui desportista, campeão, sou de uma família de campeões. Mas na política é a causa e a necessidade de travar o combate [que prevalecem]. Ficaria mal comigo se não travasse esse combate. Fui candidato a primeira vez porque me provocaram, porque me senti injustiçado.

 

A fúria é um dos seus motores?

A revolta e a indignação, sim. Aí, foi mesmo uma fúria.

 

O que há de si neste verso: “Eu sou aquele rei que não foi rei”?

Não tem paralelo. Esse poema é dos mais antigos, escrevi-o antes das candidaturas.

 

Voltando às derrotas...

Mas gosto das vitórias...

 

Não tenho de si a ideia de ser um mártir.

Não gosto de perder nem a feijões. Mas no combate contra o Cavaco ninguém queria lá ir. É um impulso. O primeiro foi uma fúria, depois de uma conversa com o Sócrates. Nem pensei, não tinha nada preparado. É um pouco como a poesia. A Sophia dizia que a poesia não se explica, implica-se.

 

Alguma vez fez as pazes com o Sócrates?

Nunca estive zangado com o Sócrates. A minha questão foi com o Mário Soares. O Sócrates não foi capaz de se opor ao Mário Soares e tomou aquela decisão. Aí discutimos. Enfrentei-o numa conversa.

 

Sei que a sua zanga foi com Soares, mas foi de propósito que perguntei se alguma vez tinha feito as pazes com o Sócrates. Desde 2005 a vossa relação ficou inquinada. A sua relação com o PS, nos seus últimos anos de política activa, foi marcada por essa relação instável com Sócrates?

É natural. Mas do ponto de vista pessoal sempre mantivemos contacto. E sempre dissemos um ao outro aquilo que pensávamos.

 

Era também uma questão geracional?

Não sou pelas rupturas geracionais em política. O Mário Soares tem muito mais juventude de espírito do que têm alguns de 20 ou 30 anos que já nasceram velhinhos. Eu também me sinto assim, mais novo do que alguns muito mais novos do que eu. É outra cultura, outra maneira de ser. Um problema de idiossincrasia. Não me entendia com aquilo. Já tinha tido isso com o Guterres.

 

Mas não se tinha notado tanto cá fora.

Não. E também tinha outra relação pessoal com o Guterres. A partir de certa altura tudo é feito em função do triunfo pessoal. Cada líder que vem cria uma corte à sua volta. Cria um aparelho para dominar o partido, para a comunicação social. E depois vive em função dessa imagem, dos sound bites e das sondagens. Uma vez fiz uma trilogia: imagem, sondagem, sacanagem. A política estava muito reduzida a essa trilogia. Isso já não tinha nada a ver comigo nem com aqueles com quem fiz outras coisas.

 

Custou-lhe sair do PS?

Não saí do PS.

 

Quando se retirou da assembleia, parecia um fim de festa não tão glorioso quanto o que tinha previsto.

Fui aplaudido de pé por todos. Recebi elogios de todas as bancadas. E tinha dito que não falava, fiz um improviso. Há um ciclo, e achei que era o momento certo para acabar. Foi antes da segunda eleição presidencial. Foi depois de ter votado contra o código laboral (esse, ao pé deste...). Havia um desfasamento muito grande, aquilo já não era comigo. Foi também um acto de inconformismo. Foi um acto político.

 

Este Governo tem quase um ano. O que é que foi feito que mais põe em causa aquilo que para si era um direito adquirido?

A agenda ideológica que aplicaram muito para além do memorando. O corte dos reformados, de pessoas que descontaram toda a vida. O 13º mês, que representa muito na vida de muita gente. (Também tive cortes, mas não me vou queixar como o nosso amigo Presidente. Sou um privilegiado em relação à maioria dos portugueses.) Sobretudo a subserviência em relação aos que mandam na Europa. Querer ser bom aluno, querer ser o primeiro, querer levar uma festinha da Sra. Merkel.

 

Ouço-o e olho para a Europa. Ainda é possível, com a força hegemónica que a corrente neo-liberal tem, preservar algumas das conquistas de que fala?

Se continuam, não vai ser. Isso vai dar lugar a grandes sarilhos. As pessoas não vão abdicar de dados que fazem parte das suas vidas sem resistência – educação, saúde, direitos sociais. Na França ou na Itália, nem mesmo na Alemanha, as pessoas não se vão resignar a empobrecer.

 

O português parece um pouco resignado quando o primeiro-ministro diz que temos que empobrecer.

É horrível ter como estratégia para um país o empobrecimento. Aqui já se fizeram algumas das grandes manifestações da Europa. Os portugueses são um povo para o qual é preciso olhar com atenção. Alguém dizia: “Gostam de encostar os portugueses à saudade. Parece que aguentam tudo, e de repente atiram com tudo ao ar”.

 

Avizinham-se maus tempos?

Podem vir muito maus tempos. Esta política de austeridade, excessiva, destrói a economia. Se destrói a economia não há emprego, não há crescimento. O que faz o crescimento é também o consumo interno. Se as pequenas e médias empresas vão à falência, se o comércio fecha, se as pessoas não têm poder de compra, isto não cresce. Como é que vamos pagar a dívida? Esta política da Sra. Merkel, que tão subservientemente está a ser seguida, leva-nos a uma situação de empobrecimento, de destruição da nossa economia, e a uma regressão social brutal. Vamos andar 20, 30 anos para trás.

 

Como é que vai ficar na história?

Não sei [riso].

 

No poema Mea Culpa diz: “Desculpem lá se tenho biografia/ e se vivi a vida intensamente dedicado à política e à poesia”. Diz com ironia “desculpem lá se tenho biografia”, mas parece que é uma coisa de que se orgulha muito.

Todos os poetas têm biografia. Fernando Pessoa, além da dele, ainda fez a dos heterónimos. Isso é uma provocação para alguns literatos e críticos literários.

 

Também é uma maneira de olhar para a sua biografia, “intensa, tensa e densa”.

Fui campeão de natação, joguei futebol, fiz teatro, fui fundador do CITAC, director do jornal A Briosa, redactor da Vértice. Estudava Direito mas o meu sonho era escrever. Ser poeta. E depois apareci envolvido na luta política. Ia ter que fazer uma opção. As coisas foram-se conciliando, mas esse dilema nunca se resolveu dentro de mim. As pessoas sabem que fui um resistente, alguém que lutou pela liberdade. Sou um dos poetas mais lidos, mais cantado. Inclusive pela Amália (tenho muito orgulho nisso). A posteridade é muito curta, o tempo é infinito. Ficarei tal como vivi, tal como escrevi. Há livros meus que vão ficar, poemas que vão ficar, há imagens que vão ficar.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

Pág. 1/3