Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Pilar del Río (sobre Portugal)

22.07.13

Pilar del Río é espanhola e portuguesa. Pediu a nacionalidade portuguesa depois da morte do marido, José Saramago. Por causa dele, vive entre Espanha e Portugal desde os anos 80. É presidenta (como insiste em ser chamada) da Fundação José Saramago, aberta ao público desde 13 de Junho de 2012, na Casa dos Bicos.

 

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

Salazar não tinha razão nem quando dizia as horas! Isto supondo que dizia as horas a alguém, que dizia algo. Os portugueses que têm horror à disciplina trabalham sem descanso em empresas de todo o mundo. Talvez tivessem horror à sua disciplina. Talvez o salazarismo e outros regimes autoritários tenham impedido os cidadão portugueses de ser autónomos, com capacidade de decisão para serem donos dos seus destinos. Ele tentou fazer um eterno Portugal dos pequeninos, mas não o conseguiu. Somos gente que sabe que a vida se faz a viver, e não a cumprir ordens. E viver é trabalhar, e também sonhar, conversar com amigos, transgredir valores caducos... Enfim, os portugueses são tão bons e tão maus, tão sentimentais ou não como outras sociedades que vivem em zonas cálidas e que estão sujeitas a dependências várias.

 

Quando se mudou para Portugal, vivia-se já em democracia. Tem uma boa definição para democracia?

Tenho uma definição, não sei se é boa ou má: a democracia é essa coisa que é preciso construir todos os dias. O dia em que não se constrói, é um dia que se perde. Estamos a perder muita democracia porque muitos cidadãos do mundo não a sentem como uma coisa própria. É como se a democracia fosse qualquer coisa que pertence aos políticos, quando estes são, simplesmente, os representantes dos cidadãos, eleitos livremente, nos distintos actos eleitorais e fiscalizados através de um exercício cívico.

 

A democracia é de equilíbrio periclitante em tempo de crise?

Talvez haja crise porque antes não havia democracia e consciência da necessidade de manter o planeta numa lógica humana. Deixámos tudo nas mãos de mercadores e afundaram-nos. Agora, nem democracia, nem perspectivas.

 

Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?

Os milagres não existem. Só a cultura, a consciência, o trabalho.

 

Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody’s? Faria manguitos a quem?

Seria bom esse manguito... Ou uma gargalhada mundial que fizesse cair as suas muralhas, como as de Jericó. Eles, os amos do sistema que criaram, são tontos e pretendem fazer-nos de tontos. Porque vamos pagar os seus erros com cortes na saúde, na educação, em vida. E em direitos – que não são privilégios.  

 

“Em Portugal a aventura termina na pastelaria”, frase famosa de Alexandre O’Neill. É forçosamente assim? Quando é que a sua aventura acaba na pastelaria?

Que povo mais sábio aquele que acaba a aventura numa pastelaria... Para as lágrimas e a dor, um doce! Ou será que nos querem pobres e masoquistas? Pobres e tristes? Creio que é preciso que sejamos activos para exigir e... para ir à pastelaria!

 

Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?

Agora que já sabemos que Dom Sebastião não existe, que somos nós que devemos resgatar-nos ou levantar-nos do chão... 

Aristides Sousa Mendes quase foi eleito maior português de sempre”. O vencedor foi Salazar. Votaria em quem?

Rejeito esse concurso!, tão discutido quando se fez. Mas não Sousa Mendes, que foi grande salvando a vida de tantas pessoas perseguidas pelo nazismo, arriscando a sua e o seu trabalho. Um modelo diplomático.

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

A nosso favor, tudo! A favor dos números, nada.

 

Somos dados à flagelação. Hetero-flagelação, bem entendido. Em que situações é capaz de fazer uma auto-flagelação?

A flagelação parece-me uma perversão que deve ser tratada por um especialista – até encontrar a cura. Defendo a austeridade e a sobriedade, mas nunca a auto-condenação, ou [qualquer forma de] submissão a conceitos degradantes da condição humana.

 

Portugal é o país do desenrasca. Você é adepto do desenrasca?

Sim! É melhor isso do que estar horas à espera do senhor que roda o parafuso. Sem tirar postos de trabalho a ninguém, é melhor saber fazer de tudo, não?

Os portugueses são do tipo “todos me devem e ninguém me paga”? E são indulgentes consigo próprios na falha, no incumprimento?  

Suponho que todos tendemos a considerar-nos o umbigo do mundo, e que nos devem muito... Não creio que sejam hábitos nacionais. São seres humanos que se sentem superiores... Outra perversidade. Porque ninguém é mais do que ninguém. Nem menos. “O outro é como eu e tem o direito de dizer eu”, disse um pensador. Todos tendemos a ser indulgentes connosco, em todas as latitudes.

 

Precisamos de ser mais organizados, mais empreendedores, mais produtivos. É possível?

Podemos ser mais empreendedores. E acreditar menos nos discursos oficiais e fazer as nossas vidas. Oxalá pudéssemos fazer as nossas economias à margem dos riscos, da bolsa, do FMI, do BCE... Não sei se isto seria voltar à Idade da Pedra. Mas se houvesse uma fórmula para darmos as costas a quem antes nos deu as suas, conduzindo-nos a esta situação de crise moral e financeira de tão difícil saída...

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

A culpa não é de quem vivia de acordo com o seu tempo e com o que lhe propunham como o melhor modelo. A culpa não é solteira nem virgem: estalou nos EUA e expandiu-se pelo mundo. É uma crise sistémica, do capitalismo, que pagaremos nós, os cidadãos. De momento, talvez decidam que é preciso acabar com uns milhões de seres humanos e incendeiem uma guerra.

Não são os governos. Os governos, a partir de Obama, são reféns. Nem sequer podem impor a taxa Tobin ou outras medidas reguladoras. Sem fazer teorias da conspiração, sabemos que manda quem manda. E os demais, governos e sociedades, têm que fazer as contas. E cada ajuste num número é uma vida cortada em seres humanos. 

 

O seu olhar sobre Portugal mudou no decorrer dos anos? Como era quando chegou? O que mudou?

Quando cheguei, era tudo mais ingénuo (assim o via). Descobri ou acreditei descobrir o país da humildade e de uma naturalidade que contrastava com a sofisticação do meu ambiente. Dei-me logo conta de que as primeiras impressões estão condicionadas pela nossa atitude, que a ingénua era eu, que era um país tão complexo como os demais, porque complexas são as sociedades. Mais do que conhecer Portugal, fui conhecendo os portugueses, e dando-me conta do parecido que são os seres humanos, ainda que vivamos em organizações distintas.

Nos anos 80, quando cheguei, achei estranho as ruas estivessem vazias. Agora vejo que, pelo menos em Lisboa, as pessoas se passeiam mais. Gosto de ver pessoas nas ruas, sentadas nas esplanadas ou caminhando. É a catedral de que mais gosto: a rua, com tudo o que ela oferece.

 

A sua leitura de Portugal é marcada pelo seu país de origem? Perguntado de outro modo: um espanhol e um americano olham forçosamente de maneira diferente para este país?

Dizem que todos procuramos o que nos é próprio onde quer que vamos. Que olhamos para confirmar se há semelhanças ou para constatar superioridades. Que nos custa descodificar além do que nos é familiar. Os norte-americanos, nisso, são mestres: viajam por todo o mundo sem sair do seu mundo. Olham Portugal – suponho – como um vestígio do passado. Logo entrarão nos seus hotéis e procurarão o que é seu para comer e beber. Não penso que seja esse o olhar dos vizinhos, mesmo que comecemos por procurar modos de comportamento similares. Depois, sem problemas, vamos aceitando códigos distintos, e em culturas próximas a integração é possível. Na medida em que os seres humanos são capazes de se integrar... Em qualquer caso, é preciso tempo.

Pessoalmente não tive problemas de integração. Em lado nenhum. E claro que não os tive em Portugal. Talvez seja por ser demasiado curiosa e inconsciente e deixo-me ficar...

 

É cidadã também portuguesa. O que a fez pedir a nacionalidade? O que é para si pertencer a um país?, ser "um dos nossos"?

Pedi a nacionalidade porque, se Portugal tinha perdido um cidadão, não quis que também tivesse perdido um número. Para manter o número de Saramago, já que outra coisa não podia. Para pagar aqui os meus impostos. Para estar dentro de uma cultura que vi amar e senti respeitar. Ou seja, por todas as razões sentimentais e uma razão prática. E porque sim. Ter a nacionalidade portuguesa faz-me sentir mais em casa, em pé de igualdade com aqueles com quem me dou.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012

 

 

 

 

Paula Morelenbaum

22.07.13

Quando entrevistei Paula Morelenbaum, ela acabara de lançar em Portugal o seu segundo álbum a solo, Telecoteco. A cantora brasileira é casada com o músico Jaques Morelenbaum e juntos têm uma filha, Dora. Vive no Rio, e quando está em digressão, pelo mundo todo. www.paulamorelenbaum.com.br

 

No seu projecto a solo propõe sempre uma releitura contemporânea de grandes clássicos. É um modo de se autonomizar do maior dos clássicos, António Carlos Jobim, com quem trabalhou dez anos? Uma forma de se distanciar da sua abordagem e classicismo?

Sim, poderia dizer que um dos motivos dessas releituras é esse. Mas existem outras razões, entre elas uma vontade de aproximar essas canções antigas, muitas vezes esquecidas, e até mesmo desconhecidas, de um público jovem e amante da música brasileira; e talvez a mais importante: me agrada muito essa mistura do antigo com o novo, novas interpretações para os clássicos, a mistura do acústico com o electrónico.

 

No disco anterior, cantava Vinicius de Moraes. Em Telecoteco, faz uma viagem ao repertório anterior à Bossa Nova, que ainda se "encontra" na moderna música brasileira. O que foi mais atraente para si neste período? Como fez a selecção das canções?

Estava à procura das raízes da Bossa-Nova. Então, fui descobrir nas músicas que se ouvia no Brasil nos anos 40 e 50 – período anterior à Bossa-Nova – o que poderia ter influenciado os bossanovistas. Conversei com Carlos Lyra, João Donato, Marcos Valle, Tereza Hermany (esposa do A.C. Jobim no início de sua carreira), com o jornalista Sérgio Augusto e com Paulo César de Andrade, musicólogo que me ajudou muito na procura das canções. Essas informações me levaram a selecção deste repertório. As canções atemporais foram as que mais me atraíram. E muitas me surpreenderam pelo seu carácter profético.

 

Há uma enorme diversidade de ritmos e linguagens em Telecoteco. Que vão do Samba, ao Tango, ou à canção americana de Gershwin. Foram as músicas que ouviu desde sempre? As que fizeram de si cantora?

Não, pelo contrário. Não tinha a menor intimidade com esse repertório, e canta-lo até foi um desafio para mim.

 

Podemos identificar neste disco cúmplices do passado, como Ryuichi Sakamoto. Mas também músicos de excelência como João Donato. Porque é que os "convocou"?

Desde o início do projecto, pensava em convidar músicos que admiro e que tiveram alguma relação com a Bossa Nova – ou comigo – para participarem no Telecoteco. Tinha certeza que a colaboração deles somaria e valorizaria ainda mais o álbum. Aí, foi só ver que música tinha o estilo do músico, e estava feito o vínculo. 

 

É uma brasileira cuja carreira tem uma força especial no Japão e nos Estados Unidos. O ambiente que se ouve no seu disco é aquele que cruza o Japão, os Estados Unidos, o Brasil – ou seja, o mundo todo?

Não sei, mas gostaria muito que fosse... O Telecoteco foi considerado pelo jornal O Globo como um dos 10 melhores CDs do mundo de 2008. Fico orgulhosa e feliz quando um importante meio de comunicação do meu país valoriza o meu trabalho. Acho que conseguimos achar nesse álbum uma linguagem bem moderna, mas acima de tudo autenticamente brasileira, do século 21. Espero que isso chame a atenção de todas as pessoas que gostam de música no mundo.

 

Publicado originalmente na revista Máxima